SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com as mãos fortes e calejadas grudadas à sua carroça, a catadora de recicláveis que protagoniza “A Melhor Mãe do Mundo”, exibido em caráter especial no último Festival de Berlim, passeia pelas perigosas ruas de São Paulo, desviando dos carros, do crime e da indiferença.

A dureza da rotina de Gal, porém, passa despercebida por dois pequenos caroneiros que viajam sobre pilhas de papelão e latinhas de refrigerante. Rihanna e João Victor, seus filhos, a acompanham não num dia comum de trabalho, mas no que acreditam ser uma aventura pela capital paulista.

Mal sabem eles que aquilo é, na verdade, uma fuga. A rota da protagonista não foi traçada pensando em cooperativas ou ferros-velhos, mas com o objetivo de ir para o mais longe possível do marido, um homem charmoso e violento que, sempre que bebe, bate em Gal. O destino final é a casa de uma prima, em Itaquera, a 30 quilômetros do Centro, onde mora.

Anna Muylaert diz que a história veio até ela “como um raio”. Afeita à temática da maternidade, a diretora de filmes como “Que Horas Ela Volta?”, “Mãe Só Há Uma” e “Durval Discos” buscava um novo roteiro quando, ao visitar a Cooperativa do Glicério, ponto de coleta seletiva no centro de São Paulo, entrou em contato com diversas mães que sustentavam os filhos graças àquele trabalho.

“A mãe é uma figura muito importante e muito desvalorizada, que é vista como sacrossanta, mas que não está inserida na visão política do mundo”, diz a cineasta, que por cinco anos conviveu com aquelas mulheres, em especial com Fabiana da Silva, catadora morta em abril, que ganhou notoriedade ao carregar o filho e os sobrinhos em sua carroça enquanto trabalhava.

“Já vimos a cena da mãe abandonada, coitadinha, que se prostitui ao se ver desamparada. É algo que a dramaturgia espera, uma espécie de sacrifício [por parte da mãe]. Eu queria criar novas imagens, fiz uma opção dramatúrgica pelo afeto”, afirma ainda.

Daí nascem momentos como aquele em que Gal, ainda distante da guarida da prima, engana um policial para que seus filhos possam tomar banho na Fonte dos Desejos, chafariz da praça Ramos de Azevedo projetado pelo italiano Luigi Brizzolara. Os três pulam na água e trocam sorrisos em meio aos jatos transparentes, numa explosão de alegria que mascara a aflição da protagonista.

Quem incorpora essa força materna é Shirley Cruz, que acaba de trabalhar com Muylaert em “O Clube das Mulheres de Negócios”, uma sátira política histriônica, que pouco tem a ver com o lado sensível de “A Melhor Mãe do Mundo”.

“A Gal, naquela situação, guarda tudo dentro de si. Está tudo muito oprimido, difícil. A lágrima já secou, então não tem grito ou choro”, afirma a atriz. “A gente precisava dar um jeito para que a jornada dessa personagem não fosse para baixo, porque o lance ali é proteger os filhos, fingir que está tudo bem.”

Diretora e atriz destacam que, por mais invisibilizados que sejam, os catadores são responsáveis por coletar cerca de 90% dos materiais recicláveis que chegam às ruas das cidades do país. Alguns carregam até 400 kg em suas carroças num único dia.

Para viver a personagem, Cruz levou quilos e mais quilos em sua carroça cenográfica, enquanto caminhava pela capital paulista nas gravações. Um desafio tanto para ela, quanto para Muylaert, mas que adicionou uma camada extra de autenticidade à trama.

“É muito difícil trabalhar na rua, você fica à mercê das intempéries do tempo, do horário, do trânsito, dos perigos. Por outro lado, você tem os personagens da ficção e um mundo documental acontecendo atrás. Isso dá uma potência para o filme”, diz Muylaert. “Na cena mais perigosa, da Gal puxando os filhos na avenida do Estado, tínhamos os carros da produção a seguindo logo atrás, mas eu estava na reza”, brinca.

Outro tema no qual “A Melhor Mãe do Mundo” toca, além da maternidade e do desamparo, é a violência doméstica. Gal, afinal, tem uma vida ordenada até começar a ser agredida pelo marido. Seu trabalho é duro, mas com o que recebe ela mantém a casa de pé e os filhos na escola.

Para o papel de Leandro, Muylaert escalou Seu Jorge, músico e ator que esconde a truculência do personagem sob o charme e a voz sedutora. A farda de segurança, portanto de alguém que trabalha para proteger as pessoas, ajuda a mostrar que a violência contra a mulher está inserida nos contextos mais diversos e inesperados.

“Eu era um dos poucos homens no elenco, e aí tive o desafio de fazer um personagem extremamente distante de mim, com cenas pesadas, muito fortes. Foi um aprendizado, uma desconstrução de muitas ideias, por meio de uma história que trata justamente de amor e de afeto”, diz Seu Jorge.

A MELHOR MÃE DO MUNDO

– Quando Estreia nesta quinta (7), nos cinemas

– Classificação 14 anos

– Elenco Shirley Cruz, Seu Jorge e Rihanna Barbosa

– Produção Brasil, 2025

– Direção Anna Muylaert