SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O palco mais amplo é ocupado pelo ambicioso sonho de três garotas negras de atingir o estrelato como cantoras, custe o que custar. Já no espaço alternativo, alguns andares acima, é contada a história de quatro rapazes suburbanos que driblaram um destino criminoso e criaram uma banda que rivalizou em popularidade com os Beatles. Ambientadas entre os anos 1950 e 1960, as duas tramas acompanham típicos personagens oprimidos dos Estados Unidos pós-guerra.
“Dreamgirls: Em Busca de um Sonho”, em cartaz no Teatro Santander, retrata a ascensão de um grupo de cantoras afro-americanas em meio a um racismo generalizado e a uma latente desigualdade de gênero, que interferem nas relações pessoais e profissionais.
Em paralelo, “Jersey Boys: A História de Frankie Valli e Os Four Seasons”, sobre garotos que entraram e saíram da cadeia antes de formar um bem-sucedido grupo musical, iniciou sua temporada no 033 Rooftop, também no Complexo JK Iguatemi. Dois musicais que inspiraram filmes de sucesso sobre artistas que escapam de suas raízes no gueto apenas para descobrir que estão longe de ser livres.
“Dreamgirls” revela o preço do sucesso ao acompanhar as cantoras negras que, nos anos 1960, prosperam na América branca ao formar um grupo. Parte desse preço é conhecida: casos amorosos rompidos, famílias desfeitas, vidas destruídas. Assim como as Supremes, com as quais guardam mais do que uma semelhança passageira, as Dreamgirls têm uma série de obstáculos a superar em sua trajetória.
Como o impasse que marca o final do primeiro ato, quando o empresário da banda, Curtis, papel do cantor Toni Garrido, informa Effie -personagem de Letícia Soares-, sua amante e a melhor cantora do grupo, que está fora do conjunto.
Ela é substituída, tanto no palco quanto na afeição de Curtis, por Deena Jones, vivida por Laura Castro, mulher mais jovem, mais magra, de pele mais clara e mais maleável, porque as Dreams estão finalmente escapando do gueto do R&B para alcançar a terra lucrativa do pop branco.
Para dar o salto final, elas precisam mudar sua imagem com um visual novo, mais glamouroso, e um som “mais leve”. Effie não se encaixa -está acima do peso e seu canto é tudo menos leve.
“A história continua real porque o show business ainda é muito cruel. Não deixa pedra sob pedra. Isso se reflete muitas vezes no nosso cotidiano: uma puxada de tapete pode alterar completamente a vida, a trajetória de um grande talento”, diz Soares que, com 11 anos de carreira, ainda luta pela afirmação.
“Sei como é difícil se manter no mercado sendo pessoa preta, uma cor de pele fora dos padrões”, diz ela, cujo talento vocal é responsável pela assombrosa interpretação de “And I Am Telling You I’m Not Going”, canção com que Effie implora a Curtis que a deixe ficar, um blues sombrio, um hino à impotência de uma mulher orgulhosa diante da humilhação e da derrota, e cuja voz se assemelha a um grito sufocado.
“Esse musical trata de temas delicados, como a afirmação da música preta, mesmo com o racismo presente. A discussão ainda reverbera e é mais latente agora. Ok, os negros não têm mais espaços exclusivos e discriminatórios nas ruas e nos ônibus, mas existem ainda outras ramificações mais sinistras porque são visíveis mas disfarçadas pelo social”, diz Garrido que, em 30 anos de carreira, estreia em um musical, trabalho que logo descobriu como muito árduo.
“Para quem nunca fez como eu, é como ser colocado na cabine de um Boeing 747 e aprender em pouco tempo a pilotar. É preciso entender os comandos, os acessos, os atalhos, a comunicação, para então fazer aquele avião andar e depois decolar.”
Desde que estreou na Broadway, no final de 1981, “Dreamgirls” logo se tornou um clássico por retratar a história recente da América negra por meio do olhar da cultura popular. “Inovou também por ser muito eletrizante, a música não para, é uma grande homenagem à célebre gravadora Motown. O maior desafio é não deixar cair o ritmo das cenas, da música, da coreografia. Tudo é muito pulsante”, afirma Gustavo Barchilon, diretor da montagem brasileira.
E o fato de o musical ser exibido no amplo palco do Santander também é motivo de comemoração pelo elenco. “É um espetáculo que empodera a música preta, que nos coloca no lugar certo de reis, rainhas, divos. Será um musical histórico por contar com um elenco todo preto e apresentado em um espaço normalmente ocupado por brancos. Isso é importante no momento em que a extrema direita avança em vários países”, afirma Samantha Schmütz, que vive Lorrell Robinson, uma das Dreams.
Enquanto “Dreamgirls” é um espetáculo sobre uma vertente especialmente vibrante e mutável do rhythm and blues que se autoproclamou, com arrogância, mas não de forma imprecisa, como “o som da jovem América”, “Jersey Boys” mostra como os lamentos de Frankie Valli traduzem o som dos conjuntos habitacionais de Newark e dos bairros pobres italianos de Belleville, onde o caminho só se abre graças às relações perigosas, mantidas pelos cantores e músicos com o submundo local, especialmente os mafiosos.
“Como a regra era ‘o show não pode parar’, o musical mostra como os bastidores eram marcados por sequências de fatos cabulosos inimagináveis enquanto no palco eles são ótimos”, afirma Bruno Narchi, intérprete de Nick Massi que, ao lado de Frankie Valli, papel de Henrique Moretzsohn, Tommy DeVito, personagem de Velson D’Souza, e Bob Gaudio, vivido por Artur Volpi, artistas suburbanos de Nova Jersey, fundaram a banda The Four Seasons, em 1960.
Dois anos depois, lançaram seu álbum de estreia, “Sherry & 11 Others”, que rendeu três singles em primeiro lugar, como “Sherry”. Vieram em seguida “Walk Like a Man”, “Big Girls Don’t Cry” e “Rag Doll”, explodindo em rádios de carros e jukeboxes de restaurantes por toda parte.
De 1962 a 1964, o grupo igualou os Beach Boys em vendas de discos nos Estados Unidos, e disputou popularidade com os Beatles, uma rivalidade alimentada pela gravadora compartilhada pelas duas bandas, a Vee-Jay, que lançou, em 1963, um disco duplo chamado “The Beatles vs. The Four Seasons”.
“Mas, enquanto os Beatles romantizavam os sonhos daquela década, os Four Seasons estavam mais próximos dos trabalhadores das fábricas”, diz Volpi. “E isso explica as canções com letras mais simples, nada metafóricas, fáceis de compreender”, afirma D’Souza.
À primeira vista, pareciam rapazes certinhos e bem-vestidos; mas que lutaram contra a dura realidade de viver em bairros perigosos. “Eles eram como operários de fábrica, caminhoneiros. Os garotos que trabalhavam como frentistas em postos, que fritavam hambúrgueres”, descreveu, em uma entrevista à imprensa americana, Rick Elice, autor do libreto, letras e canções do musical, ao lado de Marshall Brickman.
DeVito, por exemplo, lidava com pequenos delitos e, como Nick Massi, aprimorou suas habilidades com o violão durante um período na prisão. Quando DeVito deixou a banda em 1970, descobriu-se que havia acumulado vultuosas dívidas de jogo e uma absurda conta de impostos.
“Apesar de tudo, havia união entre eles, uma cumplicidade”, afirma Moretzsohn que, como Frankie Valli, é responsável pela principal característica dos Four Seasons, o falsete masculino. “Eles foram pioneiros ao romper com a estética habitual e colocar essa fonação em primeiro plano, quando normalmente era usada como backing vocal. Ouvi muitas gravações do Frankie e percebi que ele sempre usou distorções vocais para atingir aquele falsete.”
Ao contrário de espetáculos biográficos, “Jersey Boys” não traz apenas uma narrativa superficial para apresentar canções. “A dramaturgia tem a estrutura própria de um musical, com as canções apresentadas no primeiro ato em ordem cronológica para contar a história do grupo, mas, no segundo ato, a função teatral se sobressai, com as músicas comentando fatos da vida deles. Como as músicas são muito conhecidas, decidimos não traduzir as letras”, diz o diretor-geral Fred Hanson.
JERSEY BOYS – O MUSICAL
Quando Sex., às 20h30, sáb. e dom., às 15h30 e 19h00; Até 7/9
Onde 033 Rooftop – Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041, SP
Preço De R$ 50 a R$ 350, ingressos em bileto.sympla.com.br
Classificação 12 anos
Elenco Henrique Moretzsohn, Velson D’Souza e Artur Volpi
Direção Fred Hanson
DREAMGIRLS – EM BUSCA DE UM SONHO
Quando Qui., sex., às 20h; sáb., às 16h e às 20h; dom., às 15h e às 19h. Até 30/11
Onde Teatro Santander – Av. Presidente Juscelino Kubitschek, 2041, SP
Preço De R$ 50 a R$ 350, ingressos em bileto.sympla.com.br
Classificação 10 anos
Elenco Letícia Soares, Toni Garrido e Samantha Schmütz
Direção Gustavo Barchilon