SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ainda que tarifas de 50% sejam de fato um grande problema comercial e econômico, o pior risco criado pelo tarifaço do presidente Donald Trump contra o Brasil é outro: o tipo de lei que sustenta as sanções.

A avaliação é do advogado Andrés Lopes da Costa, especialista em tributação internacional. Costa diz que o processo contra o Brasil tem como base a aplicação da International Emergency Economic Powers Act, a IEEPA, legislação usada contra países como Irã e Coreia do Norte.

A IEEPA, explica ele, dá poderes ao Executivo dos Estados Unidos, sem consulta ao Congresso, a qualquer momento, impedir exportações e importações de empresas brasileiras que tiverem qualquer elemento de conexão com os Estados Unidos.

O advogado alerta que nas negociações com outros países, a IEEPA até é citada, mas as bases jurídicas para as tarifas são outras, de caráter comercial ou concorrencial. Trump não usou esse instrumento nem contra China.

“Tem uma arma apontada para a nossa cabeça. O gatilho não foi puxado, mas pode ser a qualquer momento”, diz Costa. Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida à reportagem.

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PERGUNTA – Baseado na sua experiência como especialista em tributação internacional, podemos dizer que o pior já passou em relação ao tarifaço de Donald Trump para o Brasil?

ANDRÉS LOPES COSTA – Não. Todo mundo está olhando para a tarifa. Falaram em tarifaço, depois, em tarifinha, porque, na verdade, o efeito econômico foi muito menos grave do que se esperava. Mas lendo toda a fundamentação, os documentos da Casa Branca que dão embasamento ao tarifaço do Brasil, a grande preocupação não é a tarifa em si, mas é a justificativa da tarifa, que é baseada numa lei chamada International Emergency Economic Powers Act, a IEEPA.

Essa é uma legislação excepcional que permite ao presidente americano declarar um estado de emergência nacional diante de uma ameaça incomum e extraordinária na economia americana.

P – Mas essa fundamentação é exclusiva para o Brasil ou baseia toda a guerra comercial com os demais países, inclusive com a União Europeia?

ALC – No caso de países como Canadá, Japão, Coreia do Sul, México, Suíça e até União Europeia, a IEEPA foi mencionada em comunicados ou discursos da administração como parte de uma retórica mais ampla de emergência econômica. No entanto, as tarifas aplicadas continuaram sendo justificadas formalmente com base em instrumentos tradicionais, como a Seção 232 do Trade Expansion Act de 1962, que trata de segurança nacional sob uma ótica comercial e industrial, e não requer a declaração de emergência nem confere ao presidente os mesmos poderes discricionários.

P – E no caso da China?

ALC – O tarifaço contra a China em 2025 foi baseado na Seção 301 do Trade Act de 1974, que permite retaliações por práticas comerciais desleais.

Para ficar claro: com os demais países o argumento principal foi comercial e a IEEPA foi usada como argumento secundário ou instrumento de pressão diplomática. No caso do Brasil, o fundamento jurídico exclusivo foi a IEEPA, sem apoio na Seção 232. A declaração de emergência nacional é direcionada especificamente ao Brasil, com motivação relacionada a questões institucionais internas —e temos aí um clima tensionado de escalada política.

Um membro do Supremo Tribunal Federal está sujeito à Lei Magnitsky, incluído na lista da OFAC [Office of Foreign Assets Control], e a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal está com visto americano cancelado. Isso é uma escalada política que permite a utilização desse mecanismo da IEEPA sem nenhum aviso prévio. De um dia para o outro, o governo americano pode atingir até empresas brasileiras que não façam comércio diretamente com os Estados Unidos.

P – Pode interferir nas exportações do Brasil com outros países?

ALC – Sim, exportações e importações. Tem caráter extraterritorial, caso a empresa tenha qualquer elemento de conexão com os Estados Unidos —e quando falo conexão é qualquer elemento mesmo. Uma empresa brasileira que use tecnologia americana não poderia exportar para um terceiro país se os EUA não quiserem.

Ou seja, ainda que a empresa não trabalhe diretamente com os Estados Unidos, fica praticamente impedida de fazer comércio com outros países, se assim quiserem. Seria uma espécie de ostracismo econômico. Perde acesso a tudo que passe pelos Estados Unidos.

O risco jurídico não é imediato, nem automático, mas está latente e amplificado por esse novo status conferido ao Brasil no decreto da Casa Branca. Empresas brasileiras podem ser surpreendidas por bloqueios bancários, encerramento de linhas de crédito internacional, exclusão de fornecedores de peças e equipamentos ou até sanções secundárias formais, caso os Estados Unidos decidam intensificar sua política de dissuasão.

Para não ficar na abstração, um exemplo concreto que ilustra os riscos desse atual enquadramento contra o Brasil é o uso intensivo de fertilizantes russos pelo agronegócio brasileiro. O que antes era apenas uma questão de dependência comercial e custo de produção, agora passa a integrar uma equação geopolítica mais delicada.

A cadeia de fertilizantes é uma das mais sensíveis sob esse prisma. A Rússia, desde a invasão da Ucrânia, tornou-se alvo de sanções internacionais coordenadas. Embora o comércio de fertilizantes não esteja integralmente bloqueado, muitas empresas russas do setor figuram em listas restritivas, ou operam sob vigilância da OFAC.

Nesse contexto, quando uma empresa brasileira importa fertilizantes russos, especialmente se o faz com pagamento em dólar ou por meio de bancos com correspondência nos Estados Unidos, ela corre o risco de ser enquadrada como parte de uma estrutura de financiamento indireto a um regime sancionado.

P – Mas Trump, ou seja, o Executivo americano pode aplicar essa lei à revelia do Congresso dos Estados Unidos?

ALC – Pode, e da noite para o dia. Ele dispõe da ferramenta legal para fazer isso. O OFAC dá poder para, a qualquer momento, sem aviso prévio, sem contraditório, sem qualquer tipo de processo legislativo, incluir uma empresa ou um indivíduo numa lista negra. É super grave.

Por isso eu avalio que estão tratando a discussão de uma maneira pouco habilidosa —vamos chamar assim. Não vejo atenção para esse aspecto, e há o risco de isso se materializar.

Podemos acordar com uma surpresa dessa, se alguém subir o tom na política, se adotar um discurso mais inflamado, se Trump acordar de mal humor, se ele achar que qualquer reação do Brasil sinalize retaliação, se houver uma condenação —que é quase certa— do Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal. É uma coisa completamente discricionária por parte dos Estados Unidos, mas podem fazer isso quando eles quiserem.

P – Contra que países essa legislação já foi efetivamente aplicada?

ALC – O Irã, Líbia, Coreia do Norte. Ninguém faz negócio com esses países e, se alguém tentar, o banco não liquida a operação. É uma lei para países que violam direitos humanos. A ampliação de seu uso mostra que a política externa americana agora vem sendo conduzida num tom muito mais agressivo e ameaçador, vamos dizer assim. Está preparando o terreno para poder acionar esse tipo de mecanismo.

Estamos em um momento muito delicado, e eu estou, sinceramente, preocupado. Tem uma arma apontada para a nossa cabeça. O gatilho não foi puxado, mas pode ser a qualquer momento.

P – Mas o Brasil não é Irã, nem Líbia. É um risco real mesmo? Empresas e bancos teriam uma reação tão extrema em relação a um país com o perfil do Brasil?

ALC – Sim, fariam. Na hora em que o país ou a empresa vai para a lista negra, o banco fica impedido de fazer qualquer tipo de transação que tenha qualquer elemento de conexão com os Estados Unidos. A questão não é se o banco quer ou não quer.

É um tipo de sanção parecida com a que foi aplicada contra o ministro Alexandre de Moraes. Agora, ele não pode ter conta em nenhum banco que tenha algum elemento de conexão com os Estados Unidos. Então, se Itaú, Bradesco ou Banco do Brasil têm filial ou sucursal nos Estados Unidos, Alexandre de Moraes não pode ter conta neles. Se ele quiser usar um cartão como Visa, MasterCard, American Express, não vai conseguir também.

P – Na sua opinião, qual seria o caminho de negociação neste caso, então?

ALC – Um caminho para diplomacia brasileira é tratar a questão do julgamento, que é uma queixa de Trump, de forma técnica e didática. As diferenças entre o sistema penal brasileiro e o americano são profundas, especialmente no que se refere ao papel do Ministério Público, à estrutura das cortes e à concepção do que significa ‘perseguir criminalmente alguém’ ou ‘atentar contra liberdades civis’.

Compreender essas distinções é fundamental para entender por que certas decisões de ministros do STF —perfeitamente legítimas no contexto jurídico brasileiro— são vistas por Trump e seus aliados como ‘abusos de autoridade’ que justificariam sanções internacionais.

É preciso ainda ter em mente que a decretação da prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro ocorre nesse momento de extrema sensibilidade diplomática, e a resposta oficial que vier dos Estados Unidos não deve ser analisada isoladamente, mas nesse contexto mais amplo que inclui a IEEPA.

P – Muita gente vai dizer que isso seria baixar a cabeça, levar indevidamente uma discussão de soberania nacional para uma mesa de negociação que deve se limitar a temas comerciais…

ALC – Entendo completamente essa sua dúvida, mas sinceramente acho que evitar esse tema, fingir que ele não existe, com receio de parecer que estamos cruzando uma linha indevida ou cedendo soberania seria um erro de avaliação.

Não se trata de levar a discussão para a mesa de negociação como quem pede licença, nem de transformar um debate político em submissão jurídica. É o contrário. Enxergar o risco de forma clara, e tratá-lo com sofisticação e responsabilidade, é justamente uma forma de defender a soberania com maturidade.

Não estamos falando de um litígio entre governos sobre suco de laranja ou aço. Estamos diante de uma situação em que decisões internas de um país soberano estão sendo tratadas como ameaça à segurança nacional de outro. Isso muda completamente o cenário. O silêncio pode ser interpretado como fraqueza ou, pior, como despreparo.

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RAIO-X JOSÉ ANDRÉS LOPES DA COSTA, 56

Advogado pela PUC-Rio e mestre em direito tributário internacional pelo IBDT (Instituto Brasileiro de Direito Tributário) em São Paulo, tema que leciona na FGV Direito Rio. Também foi professor na PUC-Rio e na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Atua na assessoria de transações cross-border, reestruturações societárias, mercados financeiro e de capitas e contencioso tributário administrativo e judicial.