SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Meu Deus, o que nós fizemos? Quantos nós matamos?”, escreveu em agosto de 1945 Robert Lewis, copiloto do avião americano que havia lançado no dia 6 daquele mês a primeira bomba atômica empregada em guerra na história, sobre Hiroshima, no Japão.

A cidade portuária foi incinerada. Com ela, foram queimados metade dos 140 mil mortos no ataque; o restante padeceu sob os efeitos de queimaduras e da radiação.

Três dias depois, a conta da “Morte, a Destruidora de Mundos”, evocada do clássico hindu “Bhagavad Gita” pelo americano J. Robert Oppenheimer ao ver o poder da arma que criara, subiu para talvez 200 mil com a obliteração de Nagasaki.

Passados 80 anos, o saldo dos dois únicos empregos em guerra dos mais potentes armamentos já desenvolvidos permaneceu congelado, ainda que os números finais sejam imprecisos. Até aqui, a bomba ganhou mais potência e versatilidade, mas nunca mais foi jogada sobre seres humanos.

Isso e o fato de que há hoje nove potências nucleares, e não as dezenas que o governo americano antevia nos anos 1960, sugerem um sucesso na contenção da proliferação do meio de destruição em massa.

Para a maioria absoluta dos especialistas no assunto, porém, apenas escamoteiam uma realidade sombria: a histeria da aniquilação iminente percebida na Guerra Fria foi primeiro substituída pela negação, no período após o fim da União Soviética em 1991, e agora por uma normalização da bomba pelos países que a operam e não pretendem deixá-la de lado.

Exemplos não faltam. Donald Trump, em seu primeiro mandato, ampliou os cenários em que é possível empregar a bomba e retirou os Estados Unidos de 2 dos 3 tratados de controle de armas que garantiram a estabilidade nos pós-Guerra Fria.

Na semana passada, o republicano ameaçou Moscou com submarinos nucleares, e ele investe milhões de dólares para tentar tirar do papel um escudo contra mísseis chamado Domo Dourado.

A Rússia de Vladimir Putin, por sua vez, usou a carta nuclear desde o discurso em que anunciou a invasão da Ucrânia, em 2022. As ameaças tácitas ou não de uso de armas táticas, supostamente restritas a campos de batalha mais limitados, serviram para moderar o apoio ocidental a Kiev.

Antes disso, o russo havia anunciado uma nova família de meios de emprego da bomba, as suas “armas invencíveis” de 2018.Em resposta a Trump e, depois, dentro do contexto da guerra, modificou a doutrina nuclear russa, abrindo várias janelas para o uso dessas armas.

Em 2023, também devido ao conflito, congelou a participação russa no Novo Start, o último e mais importante acordo de controle de armas, que expira em fevereiro do ano que vem. Nesta segunda (4), rompeu a moratória de posicionamento de mísseis de curto e médio alcance na Europa, seguindo os EUA, abrindo a porta para seu novo modelo Orechnik ser instalado junto às fronteiras da Otan.

A aliança militar ocidental, por sua vez, está recebendo mais armas táticas americanas para suas bases europeias, com a volta de bombas do tipo ao Reino Unido após 17 anos. Franceses e britânicos, donos respectivamente do quarto e do quinto maiores arsenais atômicos, resolveram unificar suas operações buscando dissuadir a Rússia.

Putin colocou armas nucleares na vizinha Belarus, fazendo a Polônia pedir o mesmo aos americanos, temendo o que há do outro lado da fronteira. O russo também assinou um pacto de defesa mútua com a ditadura da Coreia do Norte, país que dia sim, dia também ameaça Seul com fogo nuclear.

A China, sempre num discreto terceiro lugar no ranking em que Rússia e EUA somam 87% das 12.241 ogivas contadas pela referencial FAS (Federação dos Cientistas Americanos, na sigla inglesa), acelerou sua produção de bombas, chegando a 600 neste ano.

O Pentágono, que diz temer um ataque conjunto de Pequim e das aliadas Moscou e Pyongyang, fala que os chineses podem chegar ao nível russo e americano de cerca de 1.500 ogivas operacionais para uso imediato, de resto estabelecido no Novo Start, na próxima década.

Talvez tão preocupante como essas preparações há o fato de que os conflitos atuais envolvem diretamente potências atômicas, amplificando os riscos que se viam nas guerras pós-1945 protagonizadas pelos EUA, da Coreia ao Afeganistão, passando pelo Vietnã.

A Ucrânia lança drones contra a Rússia; o Irã, de resto bombardeado por Israel e EUA para não ter a bomba, ataca o Estado judeu, detentor de 90 ogivas, cuja existência Tel Aviv nega. Índia e Paquistão, ambas nuclearmente armadas, foram às vias de fato em uma curta guerra neste ano.

Isso tira força do argumento segundo o qual a dissuasão nuclear, o temor de uma nova Hiroshima, é perfeita. Não por acaso, o ponteiro do simbólico Relógio do Juízo Final, da ONG Boletim dos Cientistas Atômicos, chegou neste ano ao pior nível da história.

A Otan vê potencial de uma guerra com Moscou até 2030 e se prepara para isso. Segundo pesquisa do instituto YouGov feita nos EUA no ano passado, 63% acreditam que a bomba faça o mundo mais inseguro, e 49% creem que ninguém as deveria ter. O Nobel da Paz de 2024 foi para uma entidade japonesa pelo fim das armas nucleares.

Até existe um instrumento para isso, o Tratado de Proibição de Armas Nucleares, ratificado por 73 países. Nenhum deles tem a bomba, tornando a advertência feita em 2022 pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, atual: “A humanidade está a um mal-entendido, um erro de cálculo da aniquilação nuclear”.