BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Congresso camuflou medidas que favorecem os grupos dos empresários Carlos Suarez e irmãos Batista em “jabutis” (jargão político para benefícios não diretamente relacionados ao tema original do projeto de lei). As medidas, na área de energia, ainda podem ser aprovadas pelos parlamentares.

Na prática, o texto em discussão obriga que o brasileiro pague mais na conta de luz para consumir eletricidade gerada a partir de empresas das quais eles são acionistas. A proposta ainda eleva a poluição da matriz elétrica do país.

Com ajuda de especialistas e cruzando as informações com outras fontes, a reportagem analisou o conteúdo das propostas no Congresso. Os trechos foram vetados por Lula (PT) na sanção da lei das eólicas em alto-mar (offshore), mas os parlamentares têm a palavra final e podem agora transformar em lei o conteúdo dos textos.

Em um trecho, os parlamentares propõem que o país seja obrigado a contratar energia de usinas a gás natural no Nordeste. São 1.250 MW (megawatts) de eletricidade –equivalente a quase uma hidrelétrica de Teles Pires, décima maior do país.

O texto afirma que a eletricidade nesse caso deve ser gerada em estados “que não possuam na sua capital ponto de suprimento de gás canalizado”.

Ocorre que as duas únicas capitais nordestinas sem suprimento de gás são Teresina (no Piauí) e São Luís (no Maranhão).

E, nos dois casos, as companhias estaduais com monopólio da distribuição do gás têm como sócio indireto Suarez. A contratação das usinas beneficiaria, portanto, as empresas das quais ele é acionista.

Suarez foi um dos fundadores do grupo de infraestrutura OAS (rebatizado de Metha, após a Operação Lava Jato). Ele tem uma holding com as iniciais de seu nome, chamada de CS Participações –dona da Termogás, que possui vários ativos no setor de energia.

A Termogás tem 74% de participação total na Gasmar (Companhia Maranhense de Gás), sendo o restante do estado do Maranhão (controlador da companhia estadual).

Na Gaspisa (Companhia de Gás do Piauí), a Termogás comprou há cerca de três anos 37,3% das ações totais. Para que a Gaspisa exerça a atividade de distribuição, deve construir uma rede de dutos ainda inexistente no estado do Piauí –o que, sem um contrato robusto de gás, não seria viável.

Procurados, representantes da Termogás não responderam aos contatos da reportagem.

Em outro trecho que pode ser aprovado pelos parlamentares, é determinada a compra de energia de determinadas termelétricas a carvão até 2050. Entre elas, a de Candiota (no Rio Grande do Sul) –controlada pela Âmbar Energia (do grupo J&F, dono da empresa de carnes JBS e controlado pelos irmãos Joesley e Wesley Batista). O grupo comprou o ativo da Eletrobras no segundo semestre de 2023.

O texto dos parlamentares afirma que serão contratadas até 2050 as usinas a carvão que já tinham contrato de fornecimento de energia ao país em 31 de dezembro de 2022 e com término não superior a 31 de dezembro de 2028. A usina se encaixa na regra criada pelos parlamentares.

Procurada, a assessoria de imprensa da J&F afirmou que a Âmbar possui 39 unidades geradoras de energia, sendo apenas a de Candiota movida a carvão mineral (as demais usam principalmente gás natural como fonte). De acordo com a empresa, a usina contribui para o abastecimento de energia no Sul em “momento de severa restrição nos níveis dos reservatórios das hidrelétricas”.

“A Âmbar acredita que todas as suas usinas, em diferentes modelos de operação, são e serão cada vez mais importantes para a segurança energética do país, independentemente de contratos no curto prazo”, afirma a empresa.

Lula vetou esse e outros jabutis no começo do ano após concluir que eles custariam ao todo R$ 65 bilhões por ano na conta de luz. De acordo com estudo da consultoria PSR feito em janeiro, o impacto pode chegar a R$ 545 bilhões até 2050 no total.

A decisão do governo foi tomada após manifestação unânime de quatro ministérios, que apontaram como justificativas falta de interesse público, aumento das tarifas e maior emissão de gases de efeito estufa (na contramão do esforço contra o aquecimento global). O trecho não foi votado pelos parlamentares na primeira leva de deliberação sobre os jabutis, em meados de junho, mas ainda pode ser aprovado.

No caso das usinas a gás, a contratação obrigatória já havia sido incluída na lei de privatização da Eletrobras –enviada ao Congresso em 2021 pelo então presidente Jair Bolsonaro e seus ministros.

Durante a tramitação em 2021, parlamentares embutiram no texto da Eletrobras um “jabuti” extenso e sem relação direta com a proposta. A manobra ficou conhecida como “emenda Saramago”, por se tratar de um trecho contínuo, sem quebras e com apenas um ponto final (tal como escrevia o Nobel de Literatura português).

Como a legislação impede o veto parcial dentro de dispositivos, barrar o trecho significaria rejeitar todo o parágrafo —o que vetaria todo o modelo de privatização da Eletrobras, fazendo a venda da empresa ir por água abaixo na época. O trecho foi sancionado por Bolsonaro e a privatização, concluída.

A engenharia literária teve a autoria do relator Elmar Nascimento (União-BA) na Câmara e foi incorporada na Casa vizinha em parecer do senador Marcos Rogério (PL-RO), que alegou na época que a medida reduziria a tarifa de energia —contrariando diferentes consultorias especializadas em energia e pareceres do próprio governo.

Mesmo assim, as usinas ficaram em maior parte no papel, aguardando uma modificação legal para se tornarem viáveis. O que impediu a estratégia de sair do papel foi a equipe técnica do Ministério de Minas Energia ter conseguido, sem alarde, colocar durante a tramitação na época um preço-teto para a venda da energia dessas usinas.

Dessa forma, os leilões das usinas começaram a acontecer, mas ficaram esvaziados. Dos 8.000 MW em usinas a gás previstos na época da aprovação, apenas 754 MW já foram contratados. Como as propostas sob análise do Congresso também elevam o preço a ser pago pela energia, as contratações das usinas voltam a ser possíveis.