WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Há cinco anos, uma ferida se abriu em Beirute. A detonação de um depósito de nitrato de amônio no porto da capital libanesa devastou a região central da cidade, em uma das maiores explosões não nucleares da história. O acidente deixou ao menos 220 mortos e 7.000 feridos.

É mais uma cicatriz na epiderme de um país marcado, no último século, por uma sequência de tragédias, a maior delas a guerra civil travada de 1975 a 1990. Os libaneses contam agora com sua histórica resiliência, de que se orgulham, e a esperança de algum tipo de justiça.

As investigações enfrentam uma série de percalços desde o fatídico 4 de agosto de 2020, impedindo a cicatrização. Forças políticas, em especial a facção xiita Hezbollah, tentam impedir o processo. Em 2021, o governo afastou o juiz Fadi Sawan, a cargo das investigações.

Existe agora a impressão de que o processo pode por fim avançar depois de dois anos estagnado. O juiz que substituiu Sawan, Tarek Bitar, tem desafiado o status quo, prometendo punir os responsáveis pelo armazenamento inadequado de uma substância tão volátil no cais.

Bitar surpreendeu ao, em janeiro deste ano, reabrir as investigações e prometer para em breve um duro relatório implicando o alto escalão. Quer punir os líderes do país não apenas pela negligência, mas também pelo histórico de corrupção e pela interferência de milícias.

“Eu que vivi a guerra civil, nunca vi nada como isso”, diz o cientista político Fadi al-Ahmar, que estava no carro a cinco quilômetros da explosão e teve as janelas do veículo estilhaçadas pelo impacto. “Quando vejo os vídeos, eu ainda sinto o medo que senti naquele dia.”

Em meio à destruição, Ahmar se mudou para o sul da França, onde tenta se distanciar das duras lembranças. Diz que, no passado, estrangeiros associavam o Líbano à guerra dos anos 1970. Hoje, só mencionam o porto. “A ideia que eles têm do Líbano é a da explosão.”

A situação é agravada pela coincidência de uma das piores crises econômicas do mundo desde o século 19. Quase metade da população vive abaixo da linha da pobreza. A isso se somam centenas de milhares de refugiados sírios, em um país de 5,8 milhões de pessoas.

Soma-se, ainda, o fato de que o país foi arrastado em 2025 a uma guerra com seu vizinho Israel, durante a qual a capital e outras regiões do país foram arrasadas por bombardeios das Forças Armadas israelenses. O cenário libanês, em sua totalidade, é o de uma imensa desesperança quanto ao futuro próximo.

Vem daí o comedido otimismo causado pela reabertura das investigações, possibilitada pela formação de um novo governo em janeiro. “A política mudou com a explosão e a guerra”, afirma Ahmar. Enfraquecida, a facção Hezbollah já não é uma grande ameaça ao juiz.

O novo presidente, Joseph Aoun, e seu primeiro-ministro, Nawaf Salam, representam neste momento essa verve pela renovação de um país machucado. Simbolizam ainda, para muitos, o desejo de um governo livre das mãos do Hezbollah e de forças externas, como o Irã.

O impacto da explosão transborda o dano humano, material e político. Já marca, também, a literatura contemporânea libanesa. Um dos maiores autores do país, Rachid Daif, publicou recentemente o romance “O Que Zeina Viu e o Que Não Viu”, sobre aquela explosão.

No seu livro, Daif acompanha a protagonista nas ruas destruídas de Beirute. O trauma coletivo desestabiliza a narrativa, gerando cenas surreais, como a de um aquário estourado e seus peixes buscando feridas nos corpos das vítimas para nadar dentro de suas veias abertas.