SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ted Chiang escreveu pouco, mas o suficiente para ser muito celebrado dentro da literatura de ficção científica. Ganhou alguns dos principais prêmios do gênero, como o Hugo, o Nebula e o Locus, além do PEN/Malamud por seus contos.

As apenas duas coletâneas de narrativas curtas publicadas por este filho de chineses-taiwaneses que migraram para os Estados Unidos foram editadas no Brasil pela Intrínseca —”Expiração”, a mais recente, e “História da sua Vida e Outros Contos”, cujo conto principal deu origem ao filme “A Chegada”, de 2016, em que uma linguista vivida por Amy Adams tenta se comunicar com alienígenas.

Linguagem, consciência, livre-arbítrio, memória, identidade, passagem do tempo e o impacto social das tecnologias estão entre os temas discutidos por Chiang e o fizeram ser comparado a nomes como Philip K. Dick, Jorge Luis Borges, Ursula K. Le Guin e Margaret Atwood. “Assim como esses predecessores tão ecléticos, Chiang explora os clichês convencionais da ficção científica de maneiras altamente não convencionais”, escreveu Joyce Carol Oates em uma resenha de “Expiração” para a New Yorker.

A revista americana adora abrir suas páginas para Chiang. Foi nela, em agosto do ano passado, que ele publicou o ensaio “Por que a IA não vai fazer arte”. O texto argumenta que a produção de uma obra artística passa necessariamente pelo esforço e pela intenção do artista e que, por isso, as inteligências artificiais não são capazes de criar algo que possa ser chamado de arte.

As ideias sobre as IAs trouxeram Chiang ao Brasil. Nesta terça-feira (5), ele ministra em São Paulo a palestra “Como a IA Transforma Linguagem e Storytelling”, organizada pela agência de comunicação Pina.

Em entrevista num hotel da cidade, bem-humorado, Chiang afirma que não usa IAs para escrever. “Por dois motivos. O primeiro é que, bem, às vezes me descrevo como um ‘vegano de LLM’ [sigla em inglês para grandes modelos de linguagem]. Não uso LLMs, como o ChatGPT, por princípio, devido ao enorme custo ambiental, da exploração da mão de obra e porque esses modelos são construídos com base no roubo de propriedade intelectual”, diz. “Usar o ChatGPT me faria sentir cúmplice de um crime, da mesma forma que os muitos veganos se sentem ao comer carne.”

“Mas, se, hipoteticamente, houvesse um LLM eficiente energeticamente, socialmente ético a ponto de os trabalhadores serem bem tratados e se esses LLMs fossem treinados apenas com trabalhos em domínio público, ainda assim eu não usaria. Escrever é uma forma de entender o que estou pensando, e não quero usar uma ferramenta digital para fazer isso por mim. Não vejo como ela poderia me ajudar, porque se quero entender os meus pensamentos, preciso descobrir o que estou pensando.”

O primeiro ponto é moral. O segundo, uma particularidade de Chiang. Será que as IAs não poderiam fazer bem um trabalho artístico ou criativo?

“O que se procura em uma obra? Você está procurando algo pelo qual alguém pagaria? Não sei se essas obras ficarão boas o suficiente para que as pessoas paguem por elas. O mais provável é que os interessados em IA generativa busquem algo não para o qual as pessoas paguem, mas algo onde possam colocar publicidade. Ninguém vai pagar para ouvir essa música, mas posso pôr comerciais ali. Então, se é isso o que querem, então aí, sim, a IA pode ajudar.”

Mas, para Chiang, uma obra de arte demanda uma conexão que as máquinas não conseguem proporcionar. “Algumas pessoas diriam que a pintura é uma forma de os humanos se conectarem. Música é uma forma de conexão. Ficção literária é uma forma de conexão. A IA não pode fazer esse trabalho, porque não há conexão. Se você assiste a um filme para conhecer a visão de mundo de um cineasta, não terá isso numa produção gerada por IA. Se você observa uma pintura e entende a visão de mundo de um artista, certamente não verá isso numa imagem gerada por IA. Então depende do que achamos que é o propósito de filmes, pinturas, música ou literatura”.

No léxico artístico de Chiang, esforço e intenção são duas palavras indissociáveis à produção de qualquer um que se proponha a fazer arte —o que, para ele, distancia as máquinas desse tipo de trabalho.

“Fazer arte envolve alguns aspectos fundamentais que, em termos simples, significam dedicar muito esforço. E as empresas vendem IA generativa não com a mensagem ‘você pode fazer arte se esforçando muito’. O que vendem é ‘vai ser fácil’”, critica ele.

“Uma empresa de tintas não pode chegar e dizer ‘aqui está uma tinta vermelha, agora você pode fazer arte tão fácil quanto aquele outro artista’. A diferença é que, quando um artista cobre uma tela de tinta vermelha e diz ‘isso é arte’, pode-se discutir se é boa ou não, mas a premissa é que o artista teve uma intenção ao fazer aquilo, refletiu sobre o que estava fazendo. Essa diferença está na intenção. Em geral, a arte é uma forma concentrada de intenção e de esforço significativo. Se alguém precisa de apenas cinco segundos para apertar um botão com um comando, isso não me interessa, não é arte.”

As IAs não têm, segundo Chiang, o poder de criar uma obra de arte, mas não devem ser descartadas da infraestrutura da produção cultural. Para o autor, o cinema é uma área que pode ser bem amiga das máquinas.

“Fazer filmes é caro e trabalhoso. Para alguém entrar dentro do negócio do cinema, tem de encarar muitas barreiras. Se você tem uma ideia para um filme, provavelmente precisará de muito dinheiro para criá-lo. Para fazer arte visual ou música, não precisamos de tanto dinheiro, e para literatura menos ainda. São diferentes meios, com diferentes tipos de barreiras para acessá-los. O impacto das IAs será maior em um meio como o cinema, porque é onde as barreiras são mais altas.”

Para Chiang, a ficção científica, tão afeita a antecipar como as tecnologias vão impactar a vida humana, costuma nos enganar quando o assunto é inteligência artificial. “Ela retrata a IA como uma espécie de mente com objetivos e desejos próprios, geralmente opostos aos humanos. Esse é um grande clichê. Mas a IA que temos no mundo real não é nada disso. Na verdade, é tão diferente que é quase impreciso usar a expressão ‘inteligência artificial’ para descrever essas duas realidades —a que vemos em filmes e a que lidamos no dia a dia—, porque são muito diferentes”, afirma.

“Não temos nada parecido com HAL 9000, de ‘2001 – Uma Odisseia no Espaço’. Acho que as empresas que vendem produtos de IA querem criar essa associação. Querem que você pense que elas têm um produto sofisticado desse jeito. Mas o que elas realmente oferecem não é nada disso.”

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COMO A IA TRANSFORMA LINGUAGEM E STORYTELLING

– Quando Ter. (5), às 18h

– Onde Casa Manioca – r. Joaquim Antunes, 212, São Paulo

– Preço Ingressos esgotados

RECOMENDAÇÕES DE TED CHIANG

A Folha pediu a Ted Chiang que recomendasse autores que gosta de ficção científica. Ele citou dois.

Ray Naylor: “Li um ótimo livro dele, chamado ‘The Mountains in the Sea’. Ele trata sobre a comunicação com um tipo de polvo que talvez tenha dominado uma forma de linguagem”.

Ruthanna Emrys: “Ela escreveu um romance excelente, chamado ‘A Half-Built Garden’. É um livro sobre contato com alienígenas. É muito interessante, cheio de ideias. Entre outras coisas, os alienígenas só querem negociar com mães que estejam com seus filhos, porque veem nelas alguém em quem podem confiar. Também tem ideias sobre diferentes formas que o capitalismo pode tomar, e um mundo com múltiplas estruturas políticas coexistindo”.