SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A medida provisória 1.307/25, assinada pelo presidente Lula no último dia 18, ganhou dois apelidos no mercado: “MP dos data centers” e “MP Mário Araripe”, em referência ao dono da Casa dos Ventos, a maior geradora de energia eólica do Brasil.
O texto, vendido pelo governo federal como responsável por abrir as portas do país para os data centers, obriga todas as empresas que se instalarem em ZPEs (zonas de processamento de exportação) a consumir apenas energia renovável geradas em novas usinas.
ZPEs são áreas que concentram benefícios fiscais voltados para empresas voltadas para exportação. Na ZPE de Pecém, por exemplo, a mais desenvolvida do país, estão ArcelorMittal, White Martins e Phoenix do Pecém. Essas empresas têm isenção no pagamento de impostos, desde que enviem sua produção para fora do país.
Nos bastidores, conta-se que a medida teve a intenção de agradar a Casa dos Ventos, empresa cearense dona de vários parques eólicos e solares no Nordeste.
A percepção no mercado leva em consideração a dianteira que a Casa dos Ventos desenvolveu no segmento: uma carteira de projetos pronta com energia nova, uma relação já construída com os data centers e com os governos dos estados e conexão garantida pelo ONS (Operador Nacional do Sistema) para grandes projetos.
Enquanto outros investidores vão precisar avaliar como cumprir a MP, elaborar projetos e iniciar negociações, a Casa dos Ventos já pode assinar contratos e oficializar parcerias, que ficam valendo mesmo que a proposta não chegue a ser votada e caduque. O prazo de tramitação de uma MP é 60 dias, prorrogáveis por mais 60, totalizando 120, a partir da publicação no Diário Oficial.
A companhia já prepara a construção de um data center com investimentos de R$ 50 bilhões na ZPE de Pecém para atender a Bytedance, dona do Tik Tok. O contrato com a big tech, ainda não assinado segundo a empresa, prevê o fornecimento de energias eólica e solar para o data center.
Esses centros, responsáveis por processar milhões de dados, consomem enormes quantidades de energia -as estruturas a serem construídas pela Casa dos Ventos, por exemplo, consumirão o mesmo tanto de energia do que uma cidade de 2,8 milhões de habitantes.
Também atraiu atenção, o fato de a MP ter sido divulgada pelo presidente em visita justamente ao Ceará. “Eu assinei esta medida provisória agora, criando uma coisa chamada data center aqui, em Fortaleza, que já existe no Porto de Pecém, porque o Elmano [de Freitas, governador do Ceará] e o Camilo Santana [ministro da Educação], todo santo dia, eles estão em Brasília, enchendo o saco para eu assinar esta medida provisória. Todo santo dia”, afirmou.
Pela lei, empresas localizadas dentro de ZPE têm isenção do pagamento de impostos federais vinculados ao consumo desde que exportem toda a sua produção. Assim, a Casa dos Ventos, ao fornecer energia para o data center do TikTok terá alguns tributos isentos, inclusive o ICMS.
“Tudo o que empresas de dentro de ZPE comprarem de fora da ZPE é considerado exportação; ou seja sobre esse fornecimento, mesmo que advindo do mercado brasileiro, não há incidência de impostos federais sobre consumo, nem do ICMS; tem apenas o Imposto de Renda”, afirma Helson Braga, presidente da Abrazpe (Associação Brasileira de Zonas de Processamento de Exportação).
A MP assinada por Lula estende ainda esses benefícios aos prestadores localizados em ZPEs que forneçam serviços a outras prestadoras localizadas em ZPEs –até então empresas de serviços só podiam atender indústrias. Esse teria sido um pleito do TikTok.
“Os resfriadores de data centers, por exemplo, são considerados serviços, então agora eles podem prestar serviço para os data centers dentro de ZPE”, diz Braga.
Procurada, a Casa dos Ventos não comentou o apelido da MP que faz referência ao seu fundador. Em nota, reforçou que medida pode consolidar o país como um polo de tecnologia e inovação. “A norma parece criar condições para atrair uma nova geração de investimentos de alto valor agregado, com potencial para gerar empregos, aumentar a arrecadação de impostos e fortalecer as cadeias produtivas em escala nacional.”
O TikTok não respondeu os questionamentos da Folha de S.Paulo.
Alguns viram que a MP também pode ter caráter geopolítico. A China não tem petróleo, e tem priorizado investimentos na eletrificação com energia renovável. Big techs americanas, por sua vez, têm optado, ao menos no curto prazo, por contratar energia termelétrica a gás natural. Por não dependerem de fatores ambientais externos, essas usinas são capazes de gerar energia durante todo o tempo, sem grandes variações ao longo do dia, ao contrário de plantas solares e parques eólicos.
O uso da energia térmica por data centers tem sido incentivado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, um apoiador ferrenho das empresas de combustíveis fósseis. Não à toa, algumas big techs estão construindo suas próprias termelétricas nos EUA.
Nesse contexto, travar o avanço de energia térmica dentro de ZPEs pode, portanto, dar dianteira para os chineses no ambiente brasileiro. Isso porque o setor de data centers tem se instalado no país dentro de ZPEs, como é o caso das estruturas a serem construídas pela Casa dos Ventos e pelas americanas RT One e Optimus Technology Datacenter.
Até por isso, alguns executivos do setor ouvidos pela Folha chamaram a MP de “contra senso” e disseram que o texto pode afugentar investimentos que já estavam encaminhados.
“No cenário amplo a demanda global vai exigir mais de 67 GW (gigawatts) adicionais, então o Brasil não pode atender a interesses de pequenos grupos em detrimento do nosso desenvolvimento tecnológico enquanto nação. Se o Brasil quiser ser relevante nesse cenário -e temos tudo pra ser- precisamos ter um marco energético para data centers compatível com essa ambição”, afirma Alberto Leite, fundador e CEO do Grupo FS, com investimentos em data centers no país.
“A MP, do jeito que está, trava justamente o que deveríamos estar destravando: escala, velocidade e previsibilidade.”
A media também incomodou o setor de gás. A Energisa, por exemplo, que tem vários negócios no setor de distribuição de gás, divulgou nesta semana um estudo encomendado pela empresa que aponta a necessidade de diversificação energética no setor de data centers. O documento diz que nenhum país relevante sustenta sua infraestrutura digital apenas com sol e vento.
A Siemens Energy, que produz equipamentos para termelétricas e é acionista de uma usina no Brasil, também reclamou.
Especialista ouvido pela reportagem na condição de não ter o nome divulgado, detalhou que integrantes do governo não viram sentido em dar o privilégio do incentivo de uma ZPE para térmicas a gás com a dinâmica atual. A térmica teria de ficar ligada em tempo integral, no momento em que a política pública busca o contrário, a flexibilidade desse tipo de geração e a redução de emissões fósseis.
Outros especialistas que também preferem não ter o nome citado contra argumentam que, como há intermitência na geração de energias solar e eólica, mesmo os data centers que contratarem apenas energia renovável precisarão consumir energia térmica em algumas horas do dia –situação que tende a se agravar em períodos de seca.
O arcabouço legal para os data center em nível nacional ainda está em produção. Procurado pela Folha, o governo não se manifestou sobre a polêmica provocada pela MP até a publicação deste texto.
A medida também frustrou os administrados de ZPEs pelo país. Helson Braga, presidente da Abrazpe, diz que o texto, ao não tratar apenas de data centers, impacta inclusive empresas de outros setores instalados nessas áreas.
“A gente não vê nenhum sentido, por exemplo, em fazer essa restrição também para empresas industriais, que precisam ter mais liberdade e flexibilidade sobre que tipo de energia elétrica poderão utilizar”, diz Braga. “Essa questão certamente precisa ser revista.”