SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Você está demitido!” O bordão, icônico em seus anos como apresentador do reality O Aprendiz, voltou a rondar Donald Trump nas últimas semanas, agora com repercussões mais sérias. O presidente dos Estados Unidos vem sendo apontado como pivô do cancelamento do programa de auditório The Late Show e do término de contrato de seu apresentador, Stephen Colbert, com a CBS.
O caso vem no rastro de uma série de ataques do republicano ao setor cultural –de museus com patrocínio federal à poderosa Hollywood– e parece alertar que, em seu novo governo, a censura e o autoritarismo vão assombrar as artes.
O alvo da vez é a televisão. “Eu amei que Colbert foi demitido. O talento dele era ainda menor que sua audiência”, escreveu Trump na rede Truth Social. Na semana passada ele voltou à internet para dizer que não era “o único responsável” pelo cancelamento da atração do comediante -que é democrata e crítico ferrenho do presidente.
As ofensivas marcam o novo capítulo de uma longa empreitada para transformar a cultura em propaganda política. O processo começou em janeiro, quando Trump assinou decretos para cortar verbas de museus e bibliotecas, com o objetivo de barrar exposições e livros que, na visão dele, desvirtuam os chamados valores americanos.
Uma das instituições citadas foi o Smithsonian, que guarda uma das coleções de arte mais importantes do mundo. Diante de mostras de artistas queer ou que problematizam questões raciais, o presidente decretou que o museu deveria passar a ser “símbolo mundial da grandeza americana”.
A ordem fez efeito. Na semana passada, a artista Amy Sherald, conhecida por um retrato de Michelle Obama, cancelou sua exposição ao descobrir que o museu considerava remover uma de suas obras, que reinterpreta a Estátua da Liberdade como uma mulher trans.
Também nas últimas semanas, o artista nova-iorquino Andres Serrano propôs que o pavilhão americano da próxima Bienal de Veneza fosse um tipo de mausoléu dedicado ao presidente –o que, segundo ele, não seria uma forma nem de criticar nem de exaltar a figura. Em 2022, porém, a exibição de seu filme “Insurrection”, sobre a invasão ao Capitólio por supremacistas brancos, foi cancelada num teatro londrino que o considerou muito favorável ao presidente.
De volta a Washington, uma comissão orçamentária da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou que a Opera House, no prestigiado Kennedy Center, adotasse o nome da primeira-dama, Melania Trump. Se a mudança não for cumprida, fundos federais para preservar a instituição podem ser cortados.
“Em seu primeiro mandato, Trump não compreendia todos os níveis do sistema de poder. Desta vez ele está atento a todas as suas fraquezas e disposto a exercer força por qualquer meio necessário. Diferente de presidentes que foram deputados ou senadores antes, ele é uma criatura da mídia”, afirma Geoffrey Baym, diretor do departamento de estudos de mídia da Universidade Temple, nos Estados Unidos.
Se o cenário já estava agitado, o fim do Late Show causou alvoroço por seu prestígio e popularidade. Criada em 1993 por David Letterman -que classificou a decisão como um ato covarde e um desrespeito à liberdade de imprensa–, a atração já liderou a audiência da faixa noturna por quase uma década, superando concorrentes como Jimmy Kimmel e Jimmy Fallon.
Mas os tempos mudaram, segundo Baym. O ex-produtor diz que a TV americana nunca esteve tão fraca. Ele descreve uma indústria hoje menos influente diante de plataformas de streaming e das redes sociais, as mídias favoritas do público jovem.
Responsável pelo programa, a CBS, maior emissora do país, afirma que o cancelamento é fruto de uma decisão financeira. O anúncio, porém, aconteceu pouco depois de a Paramount, dona do canal, chegar a um acordo milionário para pôr fim a uma ação na qual era alvo de Trump. O presidente acusava a empresa de ter transmitido uma entrevista, durante as eleições presidenciais, que favorecia sua adversária Kamala Harris.
A negociação ocorreu ainda em meio a uma tentativa do estúdio de finalizar uma fusão com a Skydance, outra gigante do entretenimento. A aprovação cabe a agências do governo federal e deve ser concluída até o início de agosto –na semana passada, o acordo foi aprovado pela Comissão Federal de Comunicações, responsável por regulamentar as comunicações e mídias no país. Para agilizar o processo, a Skydance também declarou que eliminaria as políticas de diversidade hoje em vigor na CBS.
No mesmo período, a animação “South Park”, sob alçada da Paramount, enfrentou obstáculos. Reconhecida pelo humor crítico, a atração foi excluída do serviço de streaming do estúdio em diversos países, por questões contratuais, e teve sua 27ª temporada adiada em duas semanas.
Quando enfim foi ao ar, o capítulo de estreia representou Trump como amante do Diabo e citou os casos de Colbert e de Jeffrey Epstein –que foi amigo de Trump e é acusado de operar uma rede de exploração sexual. Dias depois, na Comic Con de San Diego, os criadores disseram que o estúdio havia tentado censurar o episódio. A Casa Branca disse que a atração era irrelevante.
“As sátiras sempre foram uma forma de desafiar autoridades. Sinto que hoje elas sofrem uma fragmentação. Você encontra diversas vozes fazendo brincadeiras políticas no TikTok, por exemplo, e nenhuma se sobrepõe à outra. Então figuras como Colbert já não têm a mesma influência”, diz Baym.
Trump impediu que o TikTok, rede social chinesa de vídeos curtos, fosse banido dos Estados Unidos. Ele, aliás, é usuário do aplicativo -alguns de seus vídeos têm mais de 100 milhões de visualizações. Em maio do ano passado, poucos meses antes das eleições presidenciais, o The New York Times noticiou que havia uma enxurrada de influenciadores conservadores na plataforma que defendiam sua candidatura.
Baym ainda identifica um êxodo da discussão política para o mercado de podcasts, com figuras que não se consideram parte da mídia. Se antes o alinhamento ao eixo republicano ou democrata era mais claro, ele cita comediantes como Joe Rogan, Theo Vaughn e Andrew Schulz entre celebridades que se declaram neutras, mas são melhor recebidas pelo público conservador.
“O maior perigo não é que os comediantes tenham que se esconder, mas que, com a formação de bolhas de mídia cada vez mais individualizadas, desapareça uma esfera pública central em que críticas estejam registradas”, afirma Amber Day, professora da Universidade Bryant e autora de “Satire and Dissent: Interventions in Contemporary Political Debate”.
O presidente também invadiu o streaming com um serviço próprio, a plataforma Trump+. Comandado pela Trump Media & Technology Group Corp., empresa do presidente, a iniciativa é uma parceria com o canal conservador Newsmax e promete, nas palavras do republicano, uma programação familiar, patriótica e não “woke” -o termo é usado por conservadores para se referir a pautas de diversidade.
O Trump+ não é a única estratégia do presidente para estender sua influência em Hollywood. Em maio, ele ameaçou taxar em 100% os filmes gravados no exterior. Mesmo que isso não tenha acontecido até agora, o tarifaço representa uma tentativa de pressionar a meca do audiovisual a seguir sua cartilha.
As taxas serviriam, segundo ele, para conter o êxodo de produções de Los Angeles e dos Estados Unidos. A medida estremeceu a lua de mel de Trump com bilionários donos de plataformas de streaming, como Jeff Bezos, do Prime Video, e Jim Cook, do Apple TV+.
Ainda que não dependam de dinheiro do governo, os estúdios preferem não queimar o filme com a Casa Branca, que pode defender seus interesses em negociações internacionais no momento em que muitos países debatem a regulamentação do streaming -inclusive o Brasil. A eleição do republicano, afinal, se deu pelo apoio de grande parcela do público de cinemas e emissoras aos seus ideais conservadores.
“Hoje, Trump é a celebridade mais famosa do mundo. Isso é novo para os figurões de Hollywood e outros porta-vozes da mídia, que ainda não sabem lidar com um governo como este”, afirma Baym. A ausência de discursos políticos em eventos como o Oscar evidencia uma indústria hoje marcada pela despolitização.
Baym vê o humorístico The Daily Show, hoje apresentado por Jon Stewart, também da Paramount, como a possível próxima vítima. “As emissoras são agentes econômicos. O objetivo é vender propagandas e obter seguidores. Elas seguem o que pode gerar lucro. O domínio desses interesses é uma forma de censura.”
Embora reconheça suas habilidades, Day diz que o presidente ainda peca em agradar quem não faz parte de sua base. “Certamente ele segue o manual dos regimes autoritários, especialmente ao atacar o Judiciário, as universidades, os imigrantes e a mídia. Mas Trump segue muito sensível à opinião pública e muitas instituições permanecem resistindo.”