TÓQUIO, JAPÃO (FOLHAPRESS) – O roteiro todo mundo já conhece: com a ajuda das redes sociais, um outsider se destaca com conteúdos controversos, às vezes com teorias da conspiração e sempre com frases potentes. O público gosta, engaja-se, e o polemista da vez entra na política. Aconteceu nos EUA, no Brasil, na Itália e em vários outros países.

Agora foi no Japão. Desde as eleições mais recentes no país, para a Câmara Alta do Parlamento, Sohei Kamiya está nos holofotes. E ele nem disputou o pleito. À frente do Sanseito, comandou a conquista de 14 assentos na Casa, resultado bem acima do esperado pelo próprio partido, que projetava 6 vagas.

O desempenho da sigla anti-imigração, cujo lema é “Japanese first”, feito do mesmo barro do “America first” de Donald Trump, ajudou a fazer com que o tradicional e muito influente Partido Liberal Democrático (PLD) perdesse sua maioria na Câmara Alta. O baque na legenda do premiê Shigeru Ishiba foi ainda maior porque na eleição para a Câmara Baixa, em outubro passado, o PLD já havia registrado o seu pior desempenho em 15 anos. Pressionado, Ishiba descartou a possibilidade de renunciar.

A ascensão do Sanseito é meteórica e pandêmica. Fundado há cinco anos, o partido nasceu na esteira do sucesso dos vídeos de Kamiya, 47, no YouTube. Ali, compartilhava desinformação sobre a Covid, incluindo teorias da conspiração sobre a origem da pandemia, e exibia ceticismo sobre as vacinas, o que encontrou eco na reticência que os japoneses já expressavam em relação a imunizantes, segundo pesquisas à época.

Ex-gerente de supermercado e professor de inglês –ainda que tenha preferido fazer uma recente entrevista a jornalistas internacionais em japonês–, Kamiya não é totalmente um outsider, já que em 2007 foi membro do conselho municipal de Suita, subúrbio de Osaka, e disputou um pleito pelo PLD em 2012, sem sucesso.

O hoje líder do Sanseito, em entrevista ao New York Times, diz que a desilusão com o que enxergou como esforços exagerados para a arrecadação de fundos o fez deixar a legenda e se concentrar em seus próprios projetos, que acabaram por desaguar no popular canal de vídeos.

Na mesma toada de Trump nos EUA, o Sanseito diz existir uma “invasão silenciosa” de estrangeiros no país, o que seria o motivo de muitos dos problemas dos japoneses. Assim, prega que o Estado gaste apenas com os cidadãos e as empresas locais.

De acordo com a Agência de Serviços Imigratórios, a população de estrangeiros residentes no país bateu a marca de 3,76 milhões de pessoas em 2024, no terceiro ano consecutivo de alta –o número configura 3% da população total. A mão de obra de fora tem se tornado mais necessária em um Japão cada vez mais envelhecido e com baixas taxas de nascimento. No ano passado, a população encolheu em quase 900 mil pessoas, a maior queda em 74 anos. E o número de pessoas com 65 anos ou mais aumentou, chegando a 36,2 milhões, o equivalente a 29,3% do total.

O turismo, outro alvo da sigla, registrou um recorde no ano passado, quando atraiu 36,8 milhões de visitantes, patamar acima do nível pré-Covid. O Sanseito vê muitos visitantes como desordeiros.

Diante de um cenário econômico difícil, em que o preço do arroz dobrou em um ano, o ataque à imigração ganhou força junto a uma parte do eleitorado. “A economia japonesa experimenta inflação pela primeira vez em cerca de três décadas, então não é uma surpresa que o atual primeiro-ministro seja impopular em condições assim”, afirma Yuki Shiraito, professor assistente de ciência política na Universidade de Michigan, nos EUA. “Mas pesquisas acadêmicas tendem a sugerir que o apoio a siglas anti-imigração em outros países, como a AfD na Alemanha e a Reunião Nacional na França, e o movimento Maga, nos EUA, não seja motivado por descontentamento econômico, mas por preconceitos.”

Casos de discriminação permeiam a trajetória de Kamiya. Em julho, ao rebater críticas num comício, usou “chon”, um termo pejorativo para se referir a coreanos. Afirmou que a sigla estava sendo “ridicularizada, chamada de idiota, estúpida e chon”. Logo depois, emendou: “Pode cortar isso. Desculpe. Vou corrigir isso”.

O episódio tem como contexto a história entre os dois países, marcada por 35 anos em que o Japão colonizou a Coreia, de 1910 a 1945, e a defesa que Kamiya faz da época imperial nipônica.

Em 2022, na campanha que o levou a conquistar uma vaga na Câmara Alta, o partido publicou um panfleto em que acusava investidores judeus de faturarem, num suposto conluio com fabricantes de máscaras, com a incitação de medo em relação ao coronavírus. O caso gerou acusações de antissemitismo contra Kamiya. Ele se justificou dizendo que visitou Israel diversas vezes e que as críticas só foram feitas porque sua legenda é contra o chamado globalismo e por ser “fato que muitos financistas internacionais são judeus”.

Para o estudante universitário Jungen Ono, 21, o antiglobalismo que o partido prega “vai contra tudo o que o Japão se beneficiou para se manter como uma das grandes economias do mundo”. Ele afirma não apoiar nem Kamiya nem as propostas econômicas e sociais da legenda, que “negam qualquer situação do mundo real”, mas defende, por outro lado, “o ideal professado pela sigla de que o país se sustente por si mesmo”.

O Sanseito, que pode ser traduzido como “participação na política”, se identifica como a legenda do “faça você mesmo”, composta por “cidadãos comuns” e sem o “nepotismo dos partidos atuais, de membros com conexões especiais ou hereditárias”. Por isso, seu manifesto de 2020 destaca a formação de candidatos e os cursos para quem quer atuar em campanhas.

O documento, em grande parte, é um amontoado de lugares-comuns sobre as intenções de produzir uma nação de “laços com as pessoas e uma vida com significado”, com “capacidade tecnológica na fronteira de soluções inovadoras” e “relações diplomáticas que criem harmonia no mundo”. Nos trechos mais práticos, defende indústrias agrícolas e pesqueiras sem uso de pesticidas, fertilizantes ou qualquer produto químico.

Também aborda as propostas anti-imigração, com regras para dificultar a compra de firmas japonesas por capital externo, maior controle da chegada de trabalhadores e oposição ao voto de residentes estrangeiros.

O que não está citado nesse manifesto, mas já foi vocalizado em outras esferas, é a posição contrária ao casamento gay, proibido no Japão, e à preservação, por mulheres, de seus nomes de solteiras depois de se casarem. Também nessa seara, Kamiya já disse que seria melhor se as japonesas voltassem a se concentrar nas tarefas domésticas e na criação dos filhos em vez de terem uma carreira focada no trabalho.

Para Shiraito, da Universidade de Michigan, ainda faltam dados para compreender o que levou o eleitorado a escolher o Sanseito neste pleito. No entanto, o professor não considera esta ascensão algo inesperado, devido ao trabalho de base que a sigla realiza. “Ainda que seja pequeno, o Sanseito tem mais de cem legisladores municipais no país. Eles podem ter conquistado vagas no Parlamento nacional rapidamente, mas não é a surpresa que parece.”