PARATY RJ (FOLHAPRESS) – Todos saímos da barriga de uma mulher, inclusive os homens que as violentam e as matam, lembra Astrid Roemer, 78.
A autora surinamesa, finalista do International Booker Prize com “Sobre a Loucura de uma Mulher”, escrito há 43 anos e só recentemente traduzido para inglês e português, dividiu uma mesa da Flip neste sábado (2) com Verenilde Pereira, 69, amazônida de mãe negra e pai indígena, pioneira na ficção afro-indígena, com “Um Rio Sem Fim”, de 1998. A jornalista Adriana Ferreira Silva conduziu o papo.
De certa forma, “toda vez que uma criança nasce, uma mulher sacrificou sua vida”, disse Roemer. “Demora três vezes para o corpo da gente voltar ao normal.” Mas há corpos que nunca voltam –nem à forma nem à vida.
Violência patriarcal é o nome que usa para o sistemático aniquilamento da condição feminina. Roemer escreve em holandês, a língua dos colonizadores de seu país natal. O Suriname conquistou sua independência em 1975, quando ela tinha 28 anos.
“Esta língua tem tanto racismo contra mim, porque eu sou de um país, como se diz, do terceiro mundo.” Na Holanda, afirmou a autora, preto e negro ganham conotação negativa, como na expressão “humor negro”.
As feministas, convocou Roemer, precisam “lavar o idioma”, porque palavras têm peso. Pereira concorda. Não podemos esquecer que “a língua também é fascista”, disse. Mas que ninguém também esqueça que podemos “portar o mundo com a literatura, que é uma vitória sobre certas misérias também”.
Ela e a companheira de mesa, disse Pereira, fazem “livro para não ser lido com preguiça”, que não dá para terminar numa sentada. O tipo de literatura que exige pausa, escuta, desvio.
A conversa demorou a engatar, em parte porque Roemer falou em holandês, uma barreira extra para seu entrosamento com a plateia. Também pesou o fato de as autoras, ainda que prestigiadas em círculos literários, estarem sendo descobertas agora por um público maior. Muita gente nunca as leu.
A mesa, contudo, esquentou na metade final, com aplausos para falas pontuais e certeiras das convidadas.
Em sua obra maior, Roemer fala sobre uma mulher insubmissa ao papel de boa moça esperado no Suriname do século 20. Em Paraty, ela questionou por que tantas mulheres são enquadradas na loucura, enquanto o desequilíbrio masculino não está na berlinda.
Cita “homens bonitos que têm tudo”, casam com lindas mulheres, têm os filhos mais bonitos, três carros na garagem, e certa noite “chegam em casa e matam todo mundo”. Ou que têm um bom casamento, se relacionam com outras mulheres e cometem feminicídio com essas amantes. “E são as mulheres que são loucas?”