PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Duas escritoras latino-americanas, a mexicana Dahlia de la Cerda e a argentina Dolores Reyes, levaram à Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, neste sábado (2), temas tão pesados quanto feminicídio e aborto com a crueza de quem sabe que a literatura é, às vezes, o lugar onde a justiça pode existir.

Vale sempre questionar por que os homens não estão escrevendo sobre o assassinato epidêmico de mulheres. “Claro, nem todo homem”, ironizou a mediadora Gabriela Mayer, ao lançar a pergunta no debate.

Autora de “Cadelas de Aluguel”, Cerda fundou o coletivo Morras Help Morras, que milita pelo aborto seguro em seu país natal. Em Paraty, ela falou sobre o peso de escrever personagens que reagem com fúria diante da violência, logo ela que se diz “antipunitivista”.

“Escrevo sobre mulheres muito furiosas, a raiva feminina, mulheres que se vingam de seus agressores ou que fazem o que podem com o que têm.”

No seu livro, por exemplo, uma personagem revida o assassinato de sua melhor amiga. “Para mim, é uma forma de problematizar a violência, de provocar reflexão nos leitores. E também porque, muitas vezes, é mais fácil encontrar justiça pela literatura do que na realidade, especialmente no México.”

A autora diz que tem nortes éticos, como ver o cárcere como última opção, que entram em conflito com o que querem as vítimas da violência masculina.

“Eu me encontrava com uma mãe cuja filha foi brutalmente assassinada por um adolescente de 16 anos, e ela dizia: ‘Eu quero que esse assassino passe o resto da vida na cadeia’. E eu não conseguia comer depois disso, porque esse era o desejo da mãe da vítima, mas contrariava meus princípios éticos. Mas eu podia simplesmente dizer a essa mãe em sofrimento: ‘A justiça que você está buscando está errada. Você quer ver esse jovem preso por 40 anos? Reavalie sua ideia de justiça’. Eu não podia fazer isso.”

Reyes vem de um país que, segundo ela, ainda prefere calar sobre a violência contra mulheres. Em “Cometerra”, ela conta a história de uma menina que tem visões ao comer terra onde corpos femininos foram violentados.

Sua protagonista, diz, “não é uma super-heroína da Marvel que sai voando, para um trem com o braço ou segura balas com o peito”. Essa criança “só tem um dom que, em nossa sociedade, ganha uma dimensão enorme, justamente pelas violências das quais Dahlia estava falando”.

Seu livro foi malvisto pelo governo Javier Milei anos após ser publicado, em 2019 –ganhou da gestão ultraliberal na economia, e com contornos moralistas nos costumes, o rótulo de literatura “degradante” e “degenerada”, nas palavras da vice-presidente Victoria Villarreal. Contexto: uma fundação havia pedido que este e outros títulos fossem retirados de escolas de Buenos Aires.

O impacto político da obra não passou despercebido. “Por que minha história foi vista como uma ameaça?”, ela se pergunta. “Talvez porque minha personagem busca meninas desaparecidas, e o poder não quer falar sobre isso. A ficção pode fazer o que o estado se recusa: forçar o leitor a passar por uma experiência simbólica e encarar a dor.”