PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Antes mesmo de dizer qualquer coisa, Nei Lopes já pisou no palco da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, sob fortes aplausos da plateia neste sábado (2). Um dos grandes intelectuais negros e compositores do Brasil, o escritor de 83 anos deu um testemunho sobre vida e trajetória intelectual, no qual atou os livros, a música e a espiritualidade de matriz africana.
Autor de sambas clássicos, como “Senhora Liberdade”, Nei contou estar trabalhando em uma autobiografia, encorajado por amigos e editoras e deu esse tom a sua fala.
O sambista e escritor começou lembrando, por exemplo, a formação intelectual que teve com o apoio da família; ele foi o primeiro a ir além do ensino primário e acabaria se formando advogado na Faculdade Nacional de Direito.
“Um dos meus irmãos era gráfico. Quando viu minha vontade de ter o livro como ferramenta, tudo o que era possibilidade ele me dava um”, disse. “Na cabeça dos meus irmãos era sempre isso: Eu não fui, mas quero que ele vá'”.
Ao mesmo tempo, os estudos eram conciliados com uma vocação festeira dentro de casa. O sambista fez a plateia rir ao contar os eventos promovidos pela família. “Meus irmãos inventaram um evento importantíssimo: o Festival do Ensopado”, riu, contando como cada um levava um prato, havia um apresentador e um júri para eleger o melhor.
A mediação bem-humorada foi do escritor e historiador Luiz Antonio Simas, parceiro do autor em diversos livros. O clima era de uma conversa descompromissada, mas que conseguiu mostrar ao público a relevância da obra do convidado
Nei discorreu sobre sua relação com as escolas de samba, desde sua estreia no Salgueiro, em 1963 ele foi autor do enredo clássico sobre Xica da Silva naquele ano, primeira vez em que os desfiles ocorreram na avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Em 1972, ele largaria o direito, mas sem que esse universo deixasse de aparecer em seus sambas.
“O samba realmente é uma cultura, uma coisa completa. Lamentavelmente, a sociedade de consumo foi mudando isso. A década de 1960 foi a que eu vivi o samba que gostaria que todos vivessem, inclusive participando do Salgueiro, que revolucionou o Carnaval”, disse.
O compositor também fez uma defesa contundente de mudanças na cultura do samba, sustentando que as escolas não girem apenas em torno dos desfiles uma vez por ano. “Deveria se descolonizar do Carnaval. Carnaval é uma coisa, samba é outra. Até os anos 1960, as escolas tinham uma vida que você não pode imaginar. Era o ano inteiro.”
Os dois lembraram também a carreira dele como escritor, que começou nos anos 1980 com “O Samba, na Realidade” e se dedica a estudar a herança africana em obras de não ficção e ficção. Simas perguntou como esse caminho se abriu para Nei.
“Tive um compromisso com a minha família, com a minha etnicidade. Era alguma coisa lá de trás me dizendo vai por aqui”, afirmou. “Era uma época em que a descolonização da África fazia chegar um material muito importante sobre as tradições africanas.”
“Quase sem querer assumi um compromisso com a minha ancestralidade essa palavra tão castigada hoje, ao mostrar que por trás da pobreza existe todo um Brasil que deve extremamente à africanidade.”
A espiritualidade também aparece em sua obra e vida ele é babalaô no Culto de Ifá e escreveu sobre esse sistema oracular iorubano, por exemplo. Segundo Nei, essa relação com a fé de matriz africana começou dentro de casa, já que sua mãe costumava incorporar uma entidade chamada vovó Maria Conga.
“Vovó Maria Conga era sentida lá em casa como se fosse uma pessoa da família”, contou. “Era natural dentro essa proximidade. O que fiz foi buscar me aprofundar, entender o que é orixá, o que não é. Fui indo e estou muito feliz com o conhecimento dessas razões, que é algo que cada um deve trazer dentro de si. Cada um tem a religião que lhe convém.”
O encontro terminou com uma bela declaração de Simas sobre a obra de Nei, que levou a plateia a fortes aplausos outra vez. “Lima Barreto tinha o desejo de escrever a história do negro no Brasil. No Memorial de Aires’, Machado de Assis diz que alguém deveria escrever a história do subúrbio do Rio de Janeiro. Se eu encontrasse os dois, eu diria: Nei Lopes fez isso.”
Os dois deixaram o palco ao som de “Samba do Irajá”, da lavra do compositor.