BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Um documento do Ministério dos Transportes aponta que a ocorrência de letalidade no trânsito está mais relacionada ao nível socioeconômico do que à exigência de formação prática dos condutores.
A nota técnica obtida pela Folha embasou a proposta da pasta de acabar com a obrigatoriedade de aulas em autoescolas para obtenção da CNH (Carteira Nacional de Habilitação).
Especialistas divergem sobre a obrigatoriedade da formação. Enquanto há quem defenda a manutenção e o aprimoramento do modelo, outros argumentam que a exigência deveria ser revista a fim de tornar o processo mais acessível economicamente à população.
Segundo o estudo, a exigência de aulas práticas não tem impacto na redução de mortes no trânsito. A análise chegou a identificar um leve aumento (0,04%) nos índices de letalidade em acidentes após a adoção da obrigatoriedade.
A principal conclusão é de que fatores estruturais dos municípios, como o nível de desenvolvimento econômico, explicam mais os óbitos no trânsito do que a formação prática.
A conclusão da nota, entretanto, aponta “ausência de significância estatística”. Isso indica que os resultados do estudo não são fortes o suficiente para garantir que não há qualquer relação entre obrigatoriedade de autoescola e mortalidade no trânsito.
Elaborado em abril de 2025 pela Subsecretaria de Fomento e Planejamento, o documento buscou responder se as aulas práticas exigidas para a CNH têm efeito na redução de infrações, acidentes e mortes.
Para isso, foram adotadas duas estratégias: uma correlação entre a obrigatoriedade das aulas e a letalidade no trânsito, e uma análise sobre o quanto essa exigência é capaz de explicar os índices de mortalidade.
A pesquisa utilizou dados das bases Renaest (Registro Nacional de Sinistros e Estatísticas de Trânsito), Renach (Registro Nacional de Condutores Habilitados) e Renavam (Registro Nacional de Veículos Automotores), todos da Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito).
Como a exigência das aulas práticas foi implementada em momentos distintos pelos Detrans (Departamentos Estaduais de Trânsito), o recorte da análise se concentrou no Ceará, Distrito Federal e São Paulo, onde havia dados mais detalhados sobre a aplicação da regra.
O estudo considerou apenas acidentes com motoristas formados sob o mesmo regime de exigência.
Dados do Atlas da Violência mostram que em 2023 houve 33 mil mortes no trânsito, aumento de 3% em relação ao ano anterior, quando houve 31.948 óbitos. Esses são os números mais recentes sobre o tema no país.
Já para avaliar a influência das condições socioeconômicas regionais nos acidentes fatais foram usados dados do IDH do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e do IHME (Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde).
A nota técnica também comparou dados de países com exigências similares de formação de condutores, como Alemanha, França, Bolívia e Guatemala. Apesar de todos exigirem aulas práticas, os países com IDH mais alto apresentaram taxas de mortalidade muito menores nas vias.
A obrigatoriedade da formação em autoescolas gera divergência entre especialistas. David Duarte Lima, doutor em segurança no trânsito e presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito, classifica o trânsito brasileiro como uma tragédia causada por três fatores: infraestrutura precária, frota envelhecida e estilo de direção arriscado.
“O Brasil é um dos países que mais tolera o risco no trânsito. Em países como Japão, EUA e na Europa, problemas como curvas perigosas são enfrentados. Aqui, ignoramos os perigos”, afirma.
Para ele, a formação de condutores no país é frágil, mas necessária. O desafio, afirma, é melhorar a qualificação dos instrutores. Lima cita a Espanha como exemplo onde a melhoria na formação reduziu em 80% a mortalidade no trânsito.
“No Brasil os condutores ensinam a manusear o veículo, mas dirigir exige percepção de risco, ética e convivência, e isso não é ensinado nas autoescolas. Mesmo com falhas, uma formação ruim ainda é melhor do que nenhuma”, conclui.
Fabio Romero, professor de Engenharia de Tráfego da Universidade de Vila Velha (UVV), é contra o fim da obrigatoriedade das autoescolas e argumenta que, além de infraestrutura, educação e fiscalização são importantes para a qualidade do tráfego no país.
Na sua avaliação, enfraquecer qualquer um desses elementos pode levar ao aumento de acidentes e mortes no trânsito, além de gerar maiores despesas para o Estado, como nos sistemas de saúde e previdência.
Romero defende que, em vez de eliminar a exigência da formação, o debate deveria focar na redução de custos e estudar incentivos para as autoescolas para que isso possa acontecer.
“A única vantagem do fim da obrigatoriedade seria a inclusão social, permitindo que mais pessoas tenham acesso à habilitação. Mesmo assim, acredito que o caminho mais adequado seja tornar o processo mais acessível, e não acabar com ele”, afirmou.
Já Nicole Goulart, diretora -xecutiva nacional do Sest Senat (Serviço Social do Transporte e Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte), afirmou que toda medida voltada à desburocratização é bem-vinda.
Mudanças devem ser adotadas com cautela, diz ela, para que a segurança viária seja preservada ao mesmo tempo em que se buscam formas de reduzir os custos para obtenção da CNH.
Ela aponta que o processo para se tornar um motorista de carga pode levar cerca de quatro anos e custar, em média, R$ 6.000. “Todo mundo está preocupado em encontrar uma alternativa viável para reduzir o desemprego”, afirmou.