FOLHAPRESS – O grande, irrecusável mérito de “O Deserto de Akin” é alargar o repertório temático do cinema brasileiro e nos lembrar de que ele é alargável ao tratar do quase desconhecido trabalho dos médicos cubanos durante os anos do programa Mais Médicos.
Quem eram eles? Quase não sabemos. Como executavam seu trabalho, que tipo de atenção conseguiam dar aos pacientes etc… É por esse terreno que vai o filme de Bernard Lessa, a partir do trabalho do médico Akin. Estamos no momento da eleição de Bolsonaro, que prometeu mandar os cubanos de volta e fechar o programa. Existe certa ansiedade com o retorno ou não desses profissionais.
Akin está disposto a voltar. Ele gosta das “missões”, como diz, que lhe são confiadas pelo governo cubano. Encontra-se, numa das cenas, com um colega, Rafael, que vive com uma brasileira, que por sinal está grávida naquele momento. Voltar não é uma opção para ele.
Desde o início, Akin namora uma moça brasileira, papel de Ana Flavia Cavalcanci. Talvez não fosse a melhor solução: ele a encontra numa balada e logo se tornam íntimos. Seria mais interessante, talvez, se o conhecêssemos antes disso: sofria muito com a distância do país? Tinha amigos? Era hostilizado por bolsonaristas? Era acolhido pelo pessoal do SUS? Era um solitário?
À parte isso, Lessa cria cenas bem interessantes do atendimento do Mais Médicos a pacientes indígenas e idosos, sempre pobres, que antes não possuíam nenhum atendimento razoável. São cenas vivas, tão boas quanto Akin e seu amigo cubano Rafael jogando beisebol esporte nacional de Cuba.
A situação dois dois é diferente: Rafael mora com uma brasileira e pretende se instalar no país. Akin sente-se bem livre e disposto a voltar para Cuba, pois gosta de viver em missão. Poderia ser um bom caminho para o roteiro, mas Lessa opta por outro.
A namorada tem um amigo, vivido por Guga Patriota, gay simpático e cozinheiro. Essa particularidade dá lugar a outra bela observação, esta sobre o trabalho na cozinha, quando uma assistente do rapaz recebe o prato, coloca-o num suporte e aperta uma campainha para chamar o garçom. Parece uma bobagem, mas captar essas pequenas cenas do cotidiano talvez seja um dos aspectos mais difíceis dessa estranha arte do cinema. E Lessa faz isso muito bem.
Como nada é perfeito nesse mundo, o filme logo se desvia para o assunto central da vida brasileira, ou pelo menos da vida brasileira no cinema brasileiro: a vida sexual, de preferência envolvendo a homossexualidade.
Ou, no caso de Akin, bissexualidade. Ele se encanta com o rapaz, o que não é de estranhar, porque ele é simpático, bem-apessoado e tudo mais. Isso poderia criar variantes interessantes, quando se sabe que as relações homossexuais em Cuba não são exatamente do agrado do governo cubano.
Daqui por diante o leitor pode se preocupar porque estará diante de spoilers, isto é, de revelações capazes de frustrar o seu prazer com as surpresas que o filme reserva. Mas não faz diferença, porque daqui por diante o filme trata de arruinar a si mesmo.
Prosseguindo: talvez Akin se sentisse reprimido em Cuba. Diz à moça que só uma vez teve relações com outro homem. Ela é bem emancipada e não se incomoda com a atração que o médico sente pelo outro rapaz. Os dois começam a namorar concomitantemente.
Mas aí entra em cena o novo governo e os cubanos são retirados pelo próprio governo de seu país. Uma questão lançada nunca será respondida: o que terá acontecido a Rafael? Será forçado a voltar para Cuba? E, se decidir ficar, será ele forçado a aderir ao novo governo, com camisa da seleção e tudo mais? E como ficará sua situação caso um dia queira voltar a Cuba? Eis um aspecto que o filme abandonou.
Em troca, Akin, que parecia bem feliz com a hipótese de ir embora, de repente passa a hesitar. Será que cooperar em várias partes do mundo, destino dos médicos cubanos, ainda lhe interessa? Se apaixonou pelo país ou pelos seus dois amores, o rapaz e a moça? Ótimo, isso pode resolver sua situação emocional e sexual. Mas como ficará no SUS, de onde o novo governo pretende se livrar de qualquer traço de cubanismo?
Diante desse impasse o que resta é largar Rafael, o amigo médico cubano na estrada e nos levar a uma espécie de final feliz, tão simpático quanto banal. Diante das perspectivas que abriu é uma pena.
O DESERTO DE AKIN
– Avaliação Regular
– Quando Em cartaz nos cinemas
– Classificação 14 anos
– Elenco Reynier Morales, Ana Flávia Cavalcanti e Guga Patriota
– Produção Brasil, 2024
– Direção Bernard Lessa