SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Shorts largos demais, tecidos que marcam o suor e outras manchas, camisetas que não respeitam o contorno dos seios nem a largura dos ombros. No futebol feminino, esse tipo de modelagem é comum quando o uniforme é feito para outro corpo, e isso tem custo para a saúde, afeta o desempenho e a autoestima das atletas.

Uniformes femininos muitas vezes são apenas versões reduzidas dos masculinos, sem considerar as diferenças anatômicas reais, o que revela despreparo da indústria e negligência estrutural. “O que aconteceu por muito tempo é que era um uniforme masculino em tamanho menor para mulher, como se a mulher fosse um homem pequeno”, afirma Mariana Camargo, médica do esporte do ambulatório de medicina esportiva do Hospital das Clínicas.

Existem efeitos fisiológicos nos uniformes mal projetados, como dermatites, candidíase, vaginose bacteriana e atrito. O maior problema, segundo a médica, ocorre quando o tecido fica úmido e não é respirável.

Camargo ressalta a ausência de ergonomia adequada não apenas nos uniformes mas também nas chuteiras. Mulheres têm mais propensão a lesões no ligamento cruzado anterior (LCA) por razões anatômicas e biomecânicas —o ângulo do fêmur em relação ao quadril é diferente devido à largura do quadril, assim como a forma de equilíbrio e salto, além de uma possível elasticidade maior dos ligamentos.

Chuteiras mal adaptadas aumentam o risco de entorses, fraturas e lesões musculares. “Se a chuteira fica presa no gramado ou se o ângulo que a mulher pisa não está certo, ela pode ter lesão ligamentar por causa disso”, explica.

A LACUNA CIENTÍFICA

Uma das maiores críticas do movimento que busca melhoria para esses uniformes é a falta de estudo e produção científica tendo o corpo da mulher e seu desempenho como foco principal.

Em 2022, uma das únicas revisões científicas com foco nas tecnologias aplicadas ao futebol feminino foi publicada na Sports Engineering. Ela identificou apenas 32 artigos publicados sobre o tema até então, em contraste com décadas de desenvolvimento no jogo masculino —sendo que nenhum específico sobre design de uniformes para conforto, ajuste ou desempenho.

A revisão afirma que jogadoras de futebol não estão em igualdade de condições em termos de tecnologia esportiva. Tanto uniformes quanto chuteiras e bolas, ao ser predominantemente desenhados para homens, aumentam riscos de lesões —há também desconforto e insegurança com shorts claros durante o período menstrual.

Durante anos, o uniforme foi tratado como detalhe irrelevante diante de outras prioridades do futebol feminino, como falta de estrutura e baixos salários, principalmente após décadas de proibição e exclusão das mulheres no esporte.

Quando Patrícia Toledo era jogadora profissional, com passagens por clubes como Corinthians, Palmeiras e Flamengo, nem pensava a fundo no problema dos uniformes, mas sabia que incomodava. As atletas se adaptavam ao que era oferecido, sem questionar, por falta de consciência sobre seus direitos. “A gente fingiu que era o que tinha que ser… Não pensava: ‘A gente pode pedir mais, a gente deve exigir mais'”, afirma ela, que hoje atua como treinadora.

O incômodo era com shorts quase no joelho e mangas que iam até o antebraço. Os uniformes antigos eram desproporcionais: grandes demais, desconfortáveis, e expunham as atletas em momentos de alongamento ou treino. Isso gerava vergonha, insegurança e uma constante necessidade de se proteger visualmente. “O tempo todo estava tentando proteger as partes íntimas para que isso não ficasse exposto.”

Para Toledo, uniformes masculinos adaptados transmitem a ideia de irrelevância do esporte praticado pelas mulheres. “A mensagem que acaba passando é que o futebol feminino é uma versão secundária do masculino.”

Toledo lembra que não havia planejamento ou adaptação dos uniformes para lidar com a menstruação, gerando medo de vazamentos e constrangimentos em dias de treino ou jogo. “Era terrível. Se era dia de jogo ou de trabalho físico forte e a gente estava menstruada, poderia vazar. Não tinha esse cuidado.”

Um estudo recente conduzido por Alex Krumer, economista esportivo e professor na Universidade de Molde, na Noruega, utilizou dados de Copas e Eurocopas femininas entre 2002 e 2023 e concluiu que times usando shorts brancos têm desempenho inferior comparado aos que usam cores escuras. Não havia diferença na versão masculina. Os principais fatores seriam a ansiedade relacionada ao período menstrual e medo de vazamentos visíveis, prejudicando foco e motivação emocional.

BUSCA POR MUDANÇAS

Toledo defende que o uniforme ideal deve priorizar três dimensões que se influenciam mutuamente: conforto, desempenho e dignidade.

Os uniformes inadequados refletem um sistema esportivo liderado majoritariamente por homens, que tomam decisões baseadas em suas próprias experiências, ignorando as demandas femininas, aponta Julia Barreira, professora do curso de educação física da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

“Os processos de tomada de decisão envolvendo os uniformes são baseados nas experiências de homens, não nas demandas de jogadoras.” Para ela, esse é apenas um dos fatores que mostram o descaso estrutural com o futebol feminino.

Barreira afirma que é preciso fortalecer a consciência crítica das atletas para que elas se sintam autorizadas a exigir condições dignas —inclusive sobre vestimenta. “Quanto mais mulheres ocuparem esses cargos, mais essas demandas vão ser levadas em consideração.”

Existe um movimento de conscientização que caminha para mudanças no esporte, puxado por seleções como a dos EUA, que usam sua plataforma para promover igualdade. “Hoje as mulheres entendem que não é nenhum favor. São direitos.”

Marcas como Nike, Adidas e Under Armour têm investido em estudos sobre anatomia feminina para desenvolver equipamentos adequados. “Tudo o que é equipamento de trabalho tem que ser pensado para as pessoas que estão usando”, diz Toledo.

O desenvolvimento ainda é recente. Houve progresso com a introdução de uniformes femininos personalizados no futebol feminino de elite desde a Copa do Mundo feminina de 2019.

Um exemplo prático dos benefícios dessa personalização ocorreu antes da Eurocopa de 2022, quando as jogadoras da Inglaterra trabalharam com a professora Joanna Wakefield-Scurr (Universidade de Portsmouth) para obter prescrições de sutiãs esportivos personalizados. Esse ajuste trouxe conforto, diminuição de dor e ganhos de performance para cerca de 17% das atletas envolvidas.

No estudo “Dez perguntas em engenharia esportiva: tecnologia no futebol feminino de elite”, um grupo de pesquisadores liderados por Katrine Kyger, da Universidade Queen Mary, de Londres, destacou a necessidade de tecnologia e vestuário esportivo específicos para mulheres e apontou que meias e chuteiras “unissex” causam escorregamentos, bolhas e até risco de torções nos tornozelos.

O estudo também aborda considerações religiosas (como o design de hijab), sutiãs esportivos, bolas e dispositivos de monitoramento de desempenho e do ciclo menstrual.

Tanto para Camargo quanto para Toledo, a ciência deve apoiar o processo de desenvolvimento e redesenho dos equipamentos. “Quem precisa ser ouvido nesse caso são as pessoas que estão vivendo o futebol feminino”, diz Camargo.