SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Seus quadrinhos já foram sátira política, crônica do cotidiano e delírio metafísico. Laerte Coutinho, 74, é cartunista da Folha desde a década de 1980. Com tiras e charges que fogem do óbvio e resistem a interpretações únicas, a desenhista diz que seu processo criativo é difícil de explicar, o que, aliás, combina com sua própria trajetória.
“Nem sempre pensei que isso seria uma profissão válida para mim”, diz Laerte, ao lembrar que no início da carreira almejava um caminho profissional mais amplo de expressão, que incluía teatro, cinema e música. Curiosamente, não imaginava seguir justamente pela via que seria seu caminho mais natural: o desenho. “Era a coisa que eu mais fazia e com mais facilidade.”
Foi um professor de música que a empurrou rumo à vocação. “Ele falou que eu estava perdendo tempo. Na hora me espantei e perguntei se eu era uma música tão ruim assim. Ele disse que não, mas que eu seria infeliz. Ele tinha razão.”
Laerte começou a publicar seus desenhos em meados de 1972. Após cinco décadas trabalhando na área, ainda lembra das Redações antes dos computadores. “Era aquela gritaria, barulho das máquinas de escrever. Todo mundo escrevendo e fumando para caramba. Jornalista tinha essa coisa neurastênica. Hoje em dia não tem mais essa zoeira toda”, diz.
Apesar das mudanças tecnológicas e editoriais, alguns processos permaneceram os mesmos para a cartunista. “Meu processo criativo atual mantém laços com o que sempre foi. Ter uma ideia, pensar naquilo para o papel, como funcionaria no quadrinho”, diz.
Laerte conta que a única mudança adotada foi quando, em 2005, abandonou os personagens fixos em suas tirinhas diz ter se cansado do formato. Segundo a artista, a decisão abriu caminho para outras ideias e referências.
Sobre a necessidade de haver sentido claro em seus quadrinhos, Laerte é direta. “Para mim isso não é importante.” A questão que lhe interessa é o que se passa na cabeça de quem lê. Ainda assim, percebe que parte dos leitores se debatem demais com interpretações específicas que, em sua visão, não levam a lugar algum. “Uma tira não é um artigo, não é uma reportagem, não é uma coluna. Está mais próxima de um poema.”
A falta de obviedade em seu trabalho gerou um fenômeno curioso. Suas publicações nas redes sociais são constantemente bombardeadas por comentários e memes sobre a compreensão ou não de suas tiras.
Imagens de lobisomens rasgando a camisa em desespero com a frase “Laerte, eu não entendi” aparecem na maioria dos comentários de suas tirinhas publicadas no X, o antigo Twitter. “As pessoas hoje consomem uma tira com o mesmo espírito com que participam de um debate nas redes sociais. Aí não dá certo. Uma tira é uma tira.”
Ela diz não se incomodar com os memes. “Fiz uma camiseta [com o meme] e comecei a vender”.
A falta de compreensão não gera apenas piada e camisetas engraçadas, a cartunista também é alvo de críticas. Um exemplo recente envolveu uma tira em que uma voz misteriosa vinda do céu pede para que uma pessoa varrendo a rua sacrifique uma ovelha. Ao ouvir que não há nenhuma ovelha por perto, a voz sugere: “Pode ser um cachorro, um gato”. A pessoa hesita: “Quem é que tá falando?”. Fim da tira.
Laerte conta que um dos leitores achou que o quadrinho era uma referência a Abraão e Isaac, e não era. “Sacrifícios e divindades que pedem sacrifício existem aos montes no mundo. Mas ali a coisa estava meio sem sentido. Não tem o que quer? Então aceita o que tem? A voz foi perdendo autoridade, né?”
A confusão também tem a ver com o estranhamento diante da estrutura clássica da tirinha de jornal personagens fixos, piadas com “punch line”, identidades bem definidas. Laerte teve liberdade para abandonar esse modelo e fez isso para reencontrar a liberdade criativa dos seus 20 anos. “Não queria voltar a ser jovem. Queria voltar a ter a liberdade que eu tinha.”