SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para a argentina María Negroni, 73, a prosa é um caminho para chegar à poesia. Com essa premissa, desenrola-se “O Coração do Dano”, seu mais novo romance, agora lançado no Brasil. O título sugere um oxímoro -o coração está mais vinculado, pelo menos simbolicamente, na cultura geral, ao amor, mais do que à ideia de machucar alguém.
A escritora argentina María Negroni Alejandro Guyot/Divulgação A imagem mostra uma mulher sentada em escadas de pedra. É sobre essa aparente contradição que Negroni elabora o texto, cuja ideia de fundo é ser uma carta a uma mãe superprotetora, vigilante, amedrontadora –e também fonte dos traumas da narradora, já adulta. Essa mãe, que foi “o grande amor” de sua vida e, ao mesmo tempo, “dona da linguagem” que ela usa até hoje, é também uma figura frágil, asmática, que provoca medo por sua fragilidade e compaixão.
O livro mistura alguns fatos autobiográficos ao texto: a narradora nasceu em Rosário e migrou para Buenos Aires. Depois, nos anos 1970, com a ditadura militar (1976-1983), exilou-se nos Estados Unidos. Negroni voltou definitivamente à Argentina em 2013.
Hoje, dá aulas de literatura latino-americana na Universidade Nacional de Três de Fevereiro, em Buenos Aires. Sua obra, composta por dezenas de livros de poesia e prosa, já recebeu várias distinções, como os prêmios Konex e Planeta.
“O Coração do Dano” é um trabalho híbrido entre poesia, ensaio e ficção. A mãe é tratada não apenas como figura materna, mas como origem da linguagem que permite à narradora fazer literatura.
A narrativa avança em fragmentos. Não há enredo no sentido clássico, nem explicações, nem resolução. Há buracos, silêncios e imagens que se repetem como um eco afetivo -uma porta, um vestido, uma carta. O texto se organiza como um diário quebrado, um mosaico de memórias e leituras, onde o dano não se explica, mas está sempre ecoando.
Negroni disse, em entrevistas, que não pretendia “reconstruir” a mãe em palavras, mas sim colocá-la em cena por meio de gestos, sombras, citações e de uma linguagem que falha por ser humana.
Nesse livro, a literatura reflete uma busca por identidade. Negroni escreve como quem costura obsessões. Entre os autores a quem recorre estão Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Paul Celan, Alejandra Pizarnik, Marguerite Duras e Paulo Leminski.
A constelação de vozes que habita o livro serve menos como citação do que como alicerce emocional. “Ler é encontrar uma voz para a perda”, disse ela, sobre as referências literárias que compõem o livro.
“O Coração do Dano” é, ao mesmo tempo, uma elegia e uma autópsia. Negroni vasculha o passado em busca de traços da mãe que permanecem, embora se choquem com outros –vê-se uma mulher inteligente, rígida, fria, que desprezava as “coisas do espírito”, mas cultivava uma disciplina comovente. Essa figura escapa à idealização. É contraditória e real. Por isso mesmo, impossível de conter num só texto.
Na sombra, está a figura paterna, questionada por ambas. O homem da família é o provedor e, ao mesmo tempo, o baderneiro –o que incentiva passeios e diversões, mas se esquiva dos cuidados cotidianos.
Uma das potências do livro está justamente na recusa da narrativa tradicional, sentimental, de resolução dos traumas do passado. Negroni prefere a hesitação, o esboço, o risco. Sua escrita está menos interessada em construir uma personagem do que em registrar os efeitos da convivência com uma ausência. O dano, afinal, está em todo lugar -na casa, na infância, no corpo, no idioma.
“Ser filha é não poder deixar de sê-lo”, ela escreve. “O Coração do Dano” é essa impossibilidade de abandonar o que foi herdado sem querer, o que foi vivido sem saber, o que foi perdido sem que desse tempo para ser entendido.
Um livro íntimo, feito de amor e de feridas que não se fecham, mas se transformam em linguagem.
O CORAÇÃO DO DANO
Preço R$ 59,90 (136 págs.)
Autoria María Negroni
Editora Poente
Tradução Paloma Vida
Avaliação Muito bom