PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Mãe quer ser pai, diziam as notícias na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, 14 anos atrás. Elas se referiam ao escritor Valter Hugo Mãe, que tinha chorado em seu discurso no evento e feito a plateia chorar junto. Entre outros assuntos, ele falara sobre seu desejo de ter um filho. Desconhecido no país, ele se tornou um sucesso.
Agora, está volta a Paraty como uma das estrelas do evento neste ano. Não só pelo lançamento do ensaio “Educação da Tristeza” (Biblioteca Azul), mas porque o livro que ele publicaria logo depois daquela Flip, “O Filho de Mil Homens”, vai virar um filme da Netflix, com direção de Daniel Rezende e Rodrigo Santoro no papel do pescador Crisóstomo.
“Queria ter mandado em tudo. Queria ter escolhido os atores, a trilha sonora, queria ter escolhido as locações. Queria ter mandado em tudo, tudo, tudo”, diz ele. “Só que não sei fazer filmes. É até melhor para mim ficar fora disso, porque só vou dizer asneiras, vou tentar cumprir todos os meus sonhos de criança. Eu só ia ficar aporrinhando os sonhos do Daniel Rezende.”
Apesar da marcada dicção lusitana da prosa de Hugo Mãe, o filme tem sotaque e atores brasileiros algo que, segundo Rezende, é mais uma transformação do que só uma tradução.
“Ouvi um dia que, quando você está adaptando um livro para o cinema, você tem que trair por amor”, diz o diretor. “Isso aconteceu, na verdade. Nos primeiros tratamentos do roteiro, ele era muito próximo da palavra do Valter. Quando foi amadurecendo, conseguimos de certa forma ir desapegando da palavra e a transformando em imagens.
Ter um livro transformado em filme pela primeira vez é uma das coisas que mudou desde aquela primeira Flip de Hugo Mãe. Outras talvez a maioria permaneceu no lugar, segundo ele. O sonho de ser pai, por exemplo, não se concretizou.
“Em 14 anos, não deu tempo”, ironiza. “Há qualquer coisa na minha vida que parece muito encurralada, que cumpre um percurso inevitável e que verdadeiramente não me retira do lugar.”
Naquela outra visita ao Brasil, ele falava justamente de como a literatura ajuda um autor a viver outras vidas. Nem isso ajudou?
“É uma fantasia quase. A gente vem, sai, faz uma viagem, tudo é muito incrível. Mas depois a gente regressa mais ou menos para o lugar de sempre. Verdadeiramente, pouca coisa me muda, pouca coisa é capaz de nos mudar. E aquilo que nos muda é algo que todos nós temos, são pessoas que amamos e, eventualmente, podem podem desaparecer.”
Valter Hugo Mãe viveu isso de perto. O sobrinho Eduardo, que inspirou “O Filho de Mil Homens” e era uma criança na primeira visita do tio ao Brasil, morreu no ano passado, aos 16 anos, vítima de um câncer. Além de lançar o filme com a história inspirada pelo garoto, o autor também publica o ensaio “Educação da Tristeza” (Globo Livros), no qual também fala da perda do rapaz. Por isso, vê o retorno a Paraty como algo repleto de simbolismo.
“Há qualquer coisa que se fecha, há qualquer ciclo que fica encerrado. Há qualquer coisa neste regresso que parece também ser uma espécie de adeus a qualquer coisa. Mas o que sinceramente sinto é que há uma aprendizagem profunda nestas perdas”, diz.
“Meu sobrinho pediu que não perdêssemos o foco da alegria. E quero estar presente desta forma: como alguém que carrega a memória dessa criança maravilhosa na minha vida, mas que tem que carregar essa memória como um aspecto da sua felicidade e não da minha tristeza. Meu sobrinho tem que significar felicidade na minha vida.”
Apesar do status de estrela neste ano, Hugo Mãe caminhava pelos corredores de sua pousada em Paraty, nesta quinta-feira (31), como só mais um leitor. Estava ansioso porque queria um autógrafo do historiador israelense Ilan Pappé, também convidado. Já tinha tentado se aproximar algumas vezes e o autor não acabava nunca uma conversa com alguém.
“Pego muitos autógrafos. Ou melhor, não pego tanto quanto gostaria. Aqui em Paraty é terrível, as pedras não deixam caminhar com rapidez. Quando você entende que cruzou com a Zélia Duncan, ela já foi. Vou dar um jeito de o Ilan Pappé não me escapar”, diz.
VALTER HUGO MÃE NA FLIP – MESA ‘ESCRITOR DE DOIS MUNDOS’
– Quando Sex. (1º), às 13h30, no Auditório da Matriz
– Link: https://youtu.be/UDtTHbetMN0
– Mediação Walter Porto