BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Verenilde Pereira, 69, admite ainda não ter se acostumando a participar de debates e estar nervosa para sua estreia na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty. Mas já há uma pergunta que ela não aguenta mais responder.
“Essa é uma questão que, às vezes, é muito mal colocada. Sempre me perguntam: É um livro de ficção? É autobiográfico? Você é alter ego de algum personagem? Olha, esse lenga-lenga deve ser alterado, é insuportável essa pergunta. É que a literatura é feita de fragmentos”, diz à Folha de S.Paulo.
Seu livro, “Um Rio sem Fim”, foi lançado em 1998, mas como a própria relata, não foi lido pela crítica da época, tampouco conquistou as prateleiras de livrarias ela encontrava nos sebos as mesmas cópias que havia distribuído em jornais, às vezes intocadas.
Mais de um quarto de século depois, a obra é relançada pela Companhia das Letras, no selo Alfaguara, e Verenilde será protagonista de uma das principais mesas da Flip, neste sábado (2).
O livro conta histórias vividas às margens do rio Negro, de uma missão católica na aldeia à Manaus, que vive entre o sonho de ser uma cidade europeia e a realidade caótica da barbárie após a decadência da borracha. Narrativas das violências sofridas por indígenas, negros, caboclas, mulheres e loucos, no final do século passado.
A obra questiona os conceitos etnocêntricos europeus, trazidos pelos colonizadores, de razão, moral, desejo, justiça inclusive a divina, prosperidade e lucidez. São apresentadas figuras como o bispo, o pajé, a freira, a cabocla, a indígena, a senhora de escravos, o jovem da cidade, a feirante.
Estes, porém, dificilmente se encaixam totalmente no que se espera de seus papéis e fogem de todas as dualidades. Trazem à tona “uma complexidade humana que vem com a dominação, com o cristianismo, com as religiões, com a destruição capitalista”.
A narrativa também questiona a sobreposição da cultura eurocêntrica sobre outras, por exemplo na cena em que um ressuscitado pajé faz uma fogueira com livros da missão, para que nunca mais os cristãos digam “o que nunca fui, como não quero ser, como essa índia aí, espie, como essa índia não é” ato repreendido pela mesma Igreja que promoveu a queima de obras na Inquisição.
O mito da criação por Adão e Eva contrasta com a personagem de Rosa Maria, a indígena que é “neta da avó do mundo”, uma das histórias que explicam a origem do ser humano.
“Essa metáfora é [considerada] absurda, não racional, não vale a pena, é uma metáfora que vai ser descartada, desvalida. Quando na verdade há outras cosmogonias, origens para o mundo, que não são destes grupos e que são absolutamente aceitas”, diz Verenilde.
Como mostrou a Folha de S.Paulo em 2022, “Um Rio sem Fim” é pioneiro ao dar protagonismo a uma personagem afro-indígena, Maria Assunção, com uma autora que também é filha de um negro com uma indígena no caso, do povo sateré mawé.
Seu sucesso recente acontece em meio a proliferação de obras de literatura afrodescendente no Brasil. Sua autora, por um lado, vê nisso o resultado de uma “uma ação política de movimentos de negritude que forçaram essa entrada” no mercado literário, mas não quer que sua obra não seja limitada pela categoria identitária.
“Eu tenho muito medo, não quero que isso se sobreponha à qualidade literária, porque há um valor literário no livro. A gente tem que ter muito cuidado para a literatura não virar panfleto. Embora a literatura seja um instrumento político isso nem se discute mais, isso é primário, mas não é panfleto”, diz.
É fácil encontrar na obra elementos que podem ser relacionados à trajetória pessoal de Verenilde, que além de ser cabocla como Maria Assunção, estudou em escola de freiras, atuou contra a mineração nos territórios indígenas e chegou a ser presa em 1986.
Verenilde por anos atuou como repórter em veículos do Norte e admite que sua forma de escrita já era um prenúncio literário, distante do tradicional conceito jornalístico do lide segundo o qual um texto deve apresentar de início, clara e objetivamente, os elementos mais importantes de uma história.
Ela lembra quando visitou um hospício, trabalhando para o Jornal do Comércio, e não encontrava forma de transformar aquela realidade em uma reportagem clássica. Das anotações deste dia, nasceram passagens de sua narrativa, adaptadas e transformadas para o “Um Rio sem Fim”. Por isso, defende, sua literatura são fragmentos.
“Ela é feita de experiências minhas, de histórias que eu vivi, de informação, é feita de um sonho que eu tive, de uma história de uma senhora que eu ouço no ônibus, de um olhar, de um episódio”, diz.
O naquele hospício ela encontrou algo que está no centro do debate de sua obra: questionar o que é considerado loucura por uma sociedade e até real.
“O que vi naquele hospício se tratava mais da miséria do que da loucura. Fiquei pensando, qual a lucidez justa? Aquelas pessoas ali estavam apontando a vulnerabilidade de qualquer ser humano. Mais do que isso, fiquei pensando, qual a lucidez justa capaz de criar um local como esse?”, questiona.
“Uma das coisas que ‘Um Rio sem Fim’ faz é resgatar essas vozes quase absurdamente aniquiladas. Você vai colhendo e coletando esses egos, esses sorrisos, esses murmúrios e impede, simbolicamente, que sejam 100% aniquilados.”
UM RIO SEM FIM
– Quando Mesa na Flip neste sábado (2) às 15h ao lado de Astrid Roemer
– Preço R$ 79,90 (184 págs.); R$ 39,90 (ebook)
– Autoria Verenilde S. Pereira
– Editora Alfaguara