SÃO CARLOS, SC (FOLHAPRESS) – Um submersível tripulado da China identificou e mapeou a mais profunda comunidade de seres vivos já encontrada nos mares do planeta. Vivendo em profundidades que chegam a quase 10 km, no noroeste do oceano Pacífico, vermes, moluscos e outros invertebrados compõem ali um ecossistema no qual a luz jamais chega, quase totalmente separado das demais formas de vida da Terra.

É preciso ressaltar o “quase” porque, segundo as análises acerca desse ambiente conduzidas pelos cientistas, as espécies encontradas dependem, em última instância, da matéria orgânica que vem de cima, de áreas mais rasas do oceano. Essa matéria orgânica é retrabalhada por bactérias que vivem abaixo do leito marinho e acaba servindo, mais tarde, de fonte de energia para os invertebrados das profundezas.

Esse mundo meio alienígena está descrito em artigo publicado nesta quarta-feira (30) na revista especializada Nature. O trabalho é assinado por pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências e da Academia Russa de Ciências, liderados respectivamente por Mengran Du e Vladimir V. Mordukhovich, junto com pesquisadores de outros países.

Para mapear os ecossistemas submarinos, a equipe se valeu do batiscafo Fendouzhe, que pode carregar três tripulantes, fica até seis horas submerso a cada viagem e lembra vagamente uma Kombi. Os mergulhos com o Fendouzhe aconteceram em duas grandes áreas, designadas como trincheira Kuril–Kamchatka e trincheira das Aleutas, entre o litoral leste da Rússia e as ilhas Aleutas (que pertencem em parte à Rússia e em parte ao estado americano do Alasca).

Entre os meses de julho e agosto de 2024, os pesquisadores identificaram comunidades de seres vivos em profundidades que iam de 5.800 metros a 9.500 metros, num raio de 2.500 km. Os membros mais comuns dos ambientes ultraprofundos são vermes do grupo dos siboglinídeos frenulados. Esses bichos têm parentesco distante com as minhocas e ficam com o corpo tubular permanentemente preso ao leito marinho.

No local mais profundo, a exatos 9.532 metros de profundidade, os tubos dos siboglinídeos medem até 30 cm de comprimento e apenas 1 mm de diâmetro, como se fossem uma floresta de caules finíssimos brotando da lama. Por cima dessa “mata” circulam outros tipos de poliquetas – vermes aparentados aos siboglinídeos, mas que se movimentam livremente, em vez de ficarem presos ao substrato.

Outros habitantes das profundezas são diferentes espécies de bivalves (moluscos com duas conchas, como os mariscos) e gastrópodes (do grupo dos caramujos e lesmas). Há ainda membros do grupo dos pepinos-do-mar e anfípodes, crustáceos que lembram vagamente os camarões.

Do que se alimentam todos esses bichos num lugar tão distante do resto da biosfera, afinal de contas? Algumas das espécies identificadas pela equipe internacional são predadoras, mas boa parte dos invertebrados ali, a começar pelos onipresentes siboglinídeos frenulados, dependem da simbiose com certas bactérias –portanto, não se “alimentam” comendo, como nós.

Em vez disso, as bactérias simbiontes presentes no corpo dos bichos realizam quimiossíntese. Ou seja, conseguem usar a energia química presente em substâncias inorgânicas do seu ambiente para produzir as moléculas necessárias para a construção de seu organismo.

Entre esses combustíveis para a sobrevivência das bactérias e seus parceiros invertebrados estão moléculas simples como o metano (CH4) e o sulfeto de hidrogênio (H2S, que tem um célebre cheiro de ovo podre –aliás, sedimentos obtidos das profundezas trazem justamente esse odor desagradável).

A grande ironia, porém, é que essas moléculas, em especial o metano, também têm origem biológica, de acordo com o estudo na Nature. Os ecossistemas descobertos pela equipe estão localizados em trechos do oceano profundo nos quais as placas tectônicas do planeta (estruturas em cima das quais os continentes viajam muito lentamente) estão se encontrando, “trombando” ou se enfiando uma embaixo da outra.

Esse processo faz com que, entre outras coisas, sobras de matéria orgânica –abundante nas camadas mais rasas do oceano– sejam enterradas embaixo do leito marinho. Lá no fundo, essa matéria orgânica é decomposta por outras bactérias. Por fim, as trombadas entre as placas tectônicas produzem fraturas na rocha, empurrando fluidos ricos em metano para cima. E, ao chegar à água do oceano profundo, esse metano serve de fonte para a quimiossíntese das bactérias “aliadas” dos invertebrados.

A distribuição de espécies das profundezas parece acompanhar justamente os pontos do leito marinho onde esse vazamento de matéria-prima para a quimiossíntese acontece. Nesses lugares, a densidade de invertebrados é impressionante, com quase 6.000 vermes ou cerca de 300 bivalves por metro quadrado em determinadas áreas.