SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com 2,9 milhões de trabalhadores com carteira assinada, a construção civil é um dos setores que mais empregam no Brasil. Mesmo assim, enfrenta hoje um apagão de mão de obra, especialmente entre os jovens que antes preenchiam as vagas de entrada. Para reverter essa tendência, empresários e sindicatos estão desenvolvendo um plano de carreira inédito, que busca mostrar o caminho da base ao topo de aprendiz a mestre de obras.
“Temos hoje uma crise muito grande. Os entrantes, aprendizes e ajudantes, estão em falta. Eles respondem por 50% da nossa força de trabalho, e não estão mais vindo”, afirma David Fratel, coordenador do Grupo de Trabalho de Recursos Humanos do Sinduscon-SP, o sindicato patronal da construção civil em São Paulo.
O problema, diz Fratel, já impacta o cronograma de obras em diversas regiões do país, com construtoras adiando fases de execução e lidando com falta de qualidade nas entregas.
Para especialistas do setor, o desinteresse pela construção civil passa por uma combinação de fatores: percepção negativa sobre o trabalho braçal, ausência de referências de ascensão na profissão e concorrência com setores mais visíveis, como tecnologia, varejo e aplicativos.
Soma-se a isso o desgaste físico típico da função longas jornadas sob sol, poeira, esforço repetitivo que afasta parte da nova geração em busca de empregos com menos impacto no corpo e mais perspectiva de conforto
Segundo Fratel, o jovem não enxerga futuro na profissão, embora o setor ofereça salários acima da média em comparação com o comércio e os serviços.
“Hoje, o salário inicial varia de R$ 2.500 a R$ 6.000 por mês. Um pedreiro experiente pode ganhar entre R$ 13 mil e R$ 15 mil, e um mestre de obras pode ultrapassar os R$ 20 mil mensais, mesmo sem ensino superior.”
O problema, diz Fratel, não é a remuneração, mas a falta de um modelo claro de progressão. “Ele não percebe que vai prosperar na carreira, porque ninguém mostrou como se faz isso”, afirma.
Para mudar esse cenário, o Sinduscon-SP e o Sintracon-SP (sindicato dos trabalhadores) estão estruturando um plano de carreira nacional, com apoio do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), para guiar o trabalhador da base até os cargos técnicos e de liderança.
Parte do plano é simbólica, mas estratégica. A ideia é abandonar termos como servente de pedreiro e adotar designações mais técnicas, como auxiliar de construção. O termo “pedreiro” também tende a desaparecer, substituído por funções como “montador de drywall” ou “instalador de infraestrutura”.
Segundo Antônio de Souza Ramalho, presidente do Sinduscon-SP, a mudança tentará combater o preconceito social embutido nos títulos tradicionais.
No plano de carreira, o trabalhador ingressa como aprendiz e, após 90 dias de experiência, já poderá ser promovido a meio-oficial, sendo efetivado e elegível para cursos de qualificação em áreas como carpintaria, azulejista, instalações hidráulicas entre outras. Em até um ano, esse profissional pode alcançar o cargo de trabalhador qualificado, atuando em sua especialidade. A cada promoção, seu salário é reajustado.
“Temos que construir juntos uma saída [para a falta de mão de obra] e com dignidade. A pessoa tem que ter orgulho em trabalhar com construção”, afirma Ramalho.
PLANO DE CARREIRA DA CONSTRUÇÃO CIVIL
– Salário inicial acima do comércio; em São Paulo e região metropolitana, os valores são a partir de R$ 2.189,97 (segundo convenção coletiva *)
– Nomenclaturas mais valorizadas: “servente” vira “auxiliar de construção”; “pedreiro” pode ser “montador de drywall” ou “instalador de infraestrutura”
– Formação contínua pela parceria com o Senai para capacitação prática e teórica por etapas
– Evolução planejada da função básica até cargos como mestre de obras (R$ 20 mil/mês)
– Inclusão de jovens, mulheres e imigrantes: com ações afirmativas e qualificação no canteiro
De acordo com a Convenção Coletiva 2025/2026, em vigor desde maio, os pisos salariais para São Paulo, Itapecerica da Serra, Taboão da Serra, Embu das Artes, Embu-Guaçu, Franco da Rocha, Mairiporã, Caieiras, Juquitiba, Francisco Morato e São Lourenço da Serra:
– Aprendiz (antigo servente, não qualificado): R$ 2.189,97
– Meio-oficial (em qualificação): R$ 2.427,36
– Trabalhador qualificado (como pedreiro, carpinteiro, eletricista etc.): R$ 2.664,75
– Obras industriais especializadas: R$ 3.192,39
(*) A convenção paulista também reforça benefícios como vale-refeição de R$ 31,80 por dia e vale-supermercado de R$ 485 por mês. Além disso, trabalhadores recebem seguro de vida, café da manhã e lanche nos canteiros.
QUALIFICAÇÃO E DIVERSIDADE PARA PREENCHER ÁREAS TÉCNICAS
As principais profissões em falta na construção civil são pedreiro, eletricista e bombeiro hidráulico, afirmou Wellington Moraes, analista administrativo da Direcional Engenharia, durante um mutirão de empregos conduzido pelo Sindicato dos Comerciários. “Serventes, por exemplo, temos bastante. Mas essas outras funções exigem experiência”, explicou.
Segundo ele, a empresa tem investido em formação interna, capacitando trabalhadores que entram como serventes para que evoluam a funções mais técnicas nos canteiros de obras.
Parte dos contratados são mulheres e imigrantes africanos acolhidos por instituições assistenciais, com quem a empresa mantém parceria.
“Mais do que buscar no mercado profissionais já prontos, estamos comprometidos em formar talentos, gerar inclusão e criar oportunidades reais de desenvolvimento humano e profissional”, afirma Gláucia Brasileiro, superintendente administrativa de obras.
Foi por meio dessa estratégia que Darcilene Barbosa Vello, 44, encontrou uma nova carreira. Desempregada havia três meses, ela soube pelo cunhado, que já trabalhava na Direcional, que a empresa estava contratando mulheres.
“Participei da seleção e fui indicada. Entrei como ajudante e fiz o curso de elétrica oferecido pela empresa em parceria com o Senai. Foi gratuito e ganhamos diploma. Me encantei pela elétrica”, conta Darcilene.
Ela diz que o início não foi fácil por ser mulher em um ambiente predominantemente masculino. “Os meninos têm um pouco de resistência. Quando você entra, é novo tanto para nós quanto para eles, então você tem que conquistar seu espaço e a confiança deles”, diz.
Hoje eletricista e estudante de geografia, ela trabalha com apoio de um engenheiro e de colegas homens, e acredita que as mulheres têm muito a agregar à construção civil.
“Antes, eu via os meninos trabalhando e achava muito difícil. Continua difícil, mas é mais gostoso. Tudo que a gente aprende nunca é perdido. Quero me aprimorar ainda mais e penso em fazer o curso de hidráulica agora. Meu sonho é ser a primeira encarregada mulher da Direcional”, afirma Darcilene.
Outro exemplo é o do angolano Mingi Masiya, 34. O imigrante encontrou a vaga na construção por meio do CAT (Centro de Apoio ao Trabalho), da prefeitura de São Paulo.
“Já fiz muita coisa desde que entrei. Estou aprendendo na área elétrica, mas entrei como servente e ainda estou exercendo essa função”, diz.
Masiya já aprendeu a fazer instalações de fiaç ão e luminárias. “Primeiro o encarregado explica, depois colocamos na prática. Meu sonho é ser profissional, ter uma vida equilibrada e trabalhar num lugar onde eu me sinta à vontade.”
A Benx Incorporadora também tem apostado na inclusão de mulheres em áreas técnicas e de gestão. No megaprojeto Parque Global, em São Paulo, a equipe própria da empresa tem equilíbrio de gênero: são 26 mulheres e 26 homens. E 100% das áreas de gestão da obra contam com presença feminina, incluindo cargos de diretoria, engenharia, segurança, meio ambiente e planejamento.
“É gratificante como mulher e líder desse projeto poder contribuir para a geração dessas oportunidades”, afirma Patrícia Neves, diretora do empreendimento. Ela lembra que 30% das mulheres foram contratadas em seu primeiro emprego, como estagiárias ou aprendizes. Duas já foram efetivadas como engenheiras neste ano.
A empresa aposta em formação prática, mentoria e treinamentos de cultura organizacional, com foco em desenvolver talentos para cargos técnicos. “Mulheres trazem um olhar diferente para inovação e gestão de pessoas. Equipes diversas são mais produtivas e engajadas”, diz Patrícia.
A construção foi o quarto setor da economia que mais gerou empregos em abril de 2025, ficando atrás de serviços, comércio, indústria e na frente da agropecuária. No primeiro quadrimestre, o setor empregou mais de 135 mil trabalhadores.