PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – O incômodo diante do trabalho doméstico, herança escravagista persistente convertida em cicatriz racista e classista na sociedade brasileira, deu o tom da quarta mesa da programação de 2025 da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty.

Lilia Guerra e Alia Trabucco Zerán participam da mesa ‘A Casa, o Mundo’ na Flip 2025, com mediação de Micheline Alves Agência Saíras Divulgação A imagem mostra um evento em um palco com um grande público. No centro, há um painel de discussão com quatro pessoas sentadas em cadeiras. Ao fundo, há uma tela grande exibindo gráficos coloridos e imagens. O ambiente é iluminado com luzes focadas no palco e o público está visivelmente atento ao que está acontecendo. Intitulada “A Casa, O Mundo”, a mesa reuniu duas escritoras premiadas, a chilena Alia Trabucco Zerán e a brasileira Lilia Guerra, com mediação da jornalista Micheline Alves, que promoveu um diálogo espontâneo entre as autoras em torno de suas obras e lembrou que o Brasil tem 6 milhões de trabalhadores domésticos. A maioria desses profissionais é composta por mulheres negras.

Apesar da densidade do tema, a conversa foi pontuada por risos e aplausos do público e pela revolta, espanto e emoção das autoras. Terminou com a entoação do samba “Canta Canta Minha Gente”, de Martinho da Vila, cujo refrão diz que “a vida vai melhorar”, verso cantado pelos espectadores que deixavam a tenda principal da Flip ao final do debate.

Trabucco Zerán é autora de “Limpa”, romance baseado em um crime real no qual uma trabalhadora doméstica que morava na casa dos patrões há sete anos envenena a filha do casal. Na investigação das motivações do crime, coloca o dedo na ferida de uma relação permeada de violência e perpetuada por uma classe abastada dentro de suas próprias casas.

“Recebi mensagens de mulheres, provavelmente patroas, que ficaram furiosas com o livro. Talvez porque tenha revelado algo sobre a família chilena que não se quer enxergar”, afirmou a autora, que quis tratar do tema a partir do silenciamento dessas mulheres e da raiva como algo que pode ser lido socialmente. “Foi muito difícil escrever essa novela por causa do incômodo que ela me provocava.”

Guerra, que além de escritora é auxiliar de enfermagem em um posto de saúde da periferia de São Paulo, lançou no ano passado “O Céu para os Bastardos”, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, que tem como personagem principal Sanarinha, uma trabalhadora doméstica como foram sua avó, sua mãe, sua tia e até a própria autora.

“Eu acompanhava a minha avó no trabalho, e ela sempre tomou muito cuidado para que eu não fosse sua assistente, porque não queria aquilo para mim. Mas, apesar disso, eu projetava essa carreira para mim, porque me parecia que não seria digno da minha parte se eu não tivesse também essa experiência”, afirmou Guerra.

Essa trajetória permitiu a ela observar trabalhadoras domésticas e seus empregadores. “Na hora de escrever, eu tinha experiência para contar e recorri às minhas observações, escutas e memórias para essas construções.”

Guerra se emocionou ao ler, com a voz embargada, um trecho do livro de Trabucco Zerán, sua companheira de mesa, em que ela relata que a personagem, Stella, era chamada de outros nomes que não o seu próprio.

É uma experiência comum a trabalhadoras domésticas, contou ela, usando um vestido com a estampa da escritora Carolina Maria de Jesus, que tem seu nome trocado até hoje com frequência para Maria Carolina.

A escolha do tema, explica, veio não apenas de sua vivência familiar e pessoal, mas das inquietações que isso provocou. “Eu pensava: como é que consegue tolerar aquilo tudo e seguir com o dia?”, afirmou. Ela contou que sua mãe às vezes levava 15 dias para conseguir chorar por algo ruim que havia acontecido no seu trabalho e que a avó cortava couve fina como ninguém porque apanhou quando ainda cortava a verdura em tiras grossas. “Esse tipo de relato, indignação e raiva delas eu guardo para usar na minha voz.”

“Poesia não paga aluguel no Brasil”, leu a escritora paraense Monique Malcher durante a mesa seguinte, intitulada “Todas as Formas”, que reuniu ela e a poeta gaúcha Mar Becker, amarrando prosa e poesia e as duas pontas do Brasil. As autoras nasceram a mais de 3.600 quilômetros de distância uma da outra e ambas fazem parte de uma geração que usa as redes sociais para reverberar suas escritas.

Mar Becker (à esq.) e Monique Malcher participam da mesa ‘Todas as Formas’ na Flip 2025 Walter Craveiro Divulgação Duas mulheres estão sentadas em cadeiras em um palco decorado com um fundo colorido. A mulher à esquerda está vestindo uma camiseta branca e calças cinzas, enquanto a mulher à direita usa um vestido vermelho e tem cabelo longo e escuro. Ambas parecem estar participando de um debate ou conversa, com copos de água e anotações sobre a mesa à sua frente. **** A força de suas obras, em leituras e declamações, cativaram o público e contornaram uma mediação confusa da livreira Nanni Rios, que só pediu para as autoras falarem sobre seus livros depois de transcorrida metade do tempo da mesa.

Malcher é dona de uma prosa poética potente que destilou em dois livros. O primeiro, “Flor de Gume”, recebeu o Prêmio Jabuti na categoria contos. O segundo, um romance intitulado “Degola”, conta a história de uma família que deixa Santarém, no Pará, cidade natal da autora, para se mudar para uma ocupação em Manaus.

Becker estreou sua poesia em 2020 com “A Mulher Submersa”, finalista do Jabuti e vencedor do prêmio Minuano de Literatura, e agora lança “Noite Devorada”, pela Círculo de Poemas, projeto exaltado durante a mesa por ser uma iniciativa dedicada à poesia -coisa rara no Brasil.

“Poesia é uma pedra porosa”, definiu a gaúcha, para quem o poema é algo que nunca acaba. “Sinto que a palavra poética tem vinculação com o vivido, o vivo, a voz. E sinto extrema dificuldade em fixar a poesia no papel.”

Juntas, Malcher e Becker falaram sobre o ódio como motor de sua literatura, da relação com as interpretações de seus leitores, e do desconforto que o ofício com a palavra provoca.

“Meu maior desconforto é saber que, quando o texto fica pronto e vai a público, ele não está mais nas minhas mãos e será lido como ironia, como denúncia ou como desserviço à minha revelia. Dá vontade de pegar ele de volta e dizer: ‘Desleia!'”, brincou a poeta, que fez a plateia cair no riso em vários momentos com histórias divertidas e poemas cheios de sarcasmo.

Já Malcher disse pouco se importar com o que vão achar de seus textos. “Vou ficar muito feliz se as pessoas gostarem, mas a verdade é que estou mais ligada se eu estou satisfeita com o que estou escrevendo. E eu nunca estou confortável escrevendo”, brincou.