PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Trabalhar como segurança de lojas é uma função dura, mas tem suas vantagens. Você ganha um salário bem baixo e tem que ficar um tempão parado, de pé, atento a tudo o que acontece a sua volta. Mas tem um ponto de vista algo privilegiado. Está vendo todas as pessoas naquele espaço, embora seja praticamente invisível a elas.

As reflexões são de Gauz, escritor da Costa do Marfim que chega agora ao Brasil com seu “De Pé, Tá Pago”, uma das primeiras publicações de autores contemporâneos da jovem editora Ercolano que já sai com lançamento de prestígio na Flip, na noite desta quinta-feira, em mesa que também terá o autor e rapper Gaël Faye, do Burundi.

Gauz -a pronúncia é simplesmente “gôs”- é um escritor desde sempre, um artista com trabalhos que avançam ainda pelo cinema, pela performance e pela música. O trabalho de segurança foi algo que o autor, hoje aos 54 anos, fez por seis semanas para ganhar dinheiro.

O marfinense se mudou para a França para estudar na universidade, num inusitado mestrado em bioquímica em duas instituições diferentes, inclusive a Universidade Paris 7. Depois de formado, já mais interessado em arte que em laboratório, tinha dificuldade para financiar seus projetos de filmes -“é difícil até para quem é branco”.

Decidiu voltar para a Costa do Marfim por um tempo, mas precisava juntar dinheiro para a passagem. Fez algumas ligações e logo conseguiu um bico de segurança, indicado por um amigo. “Era o jeito fácil, porque eu era negro, forte, e todo mundo que é assim na França consegue trabalho como segurança”, conta ele agora, em entrevista por vídeo.

“Perfil morfológico… Os negros são robustos, os negros são grandalhões, os negros são fortes, os negros são obedientes, os negros dão medo”, escreve no livro. “Impossível não pensar naquele monte de clichês do bom selvagem que está adormecido de modo atávico tanto em cada um dos brancos responsáveis pelo recrutamento quanto em cada um dos negros que passam a usar esses clichês a seu favor.”

Gauz ficou em choque já no primeiro dia de trabalho, quando abriu a loja, num centro luxuoso da capital francesa, e viu o tamanho da empolgação das mulheres que se digladiavam num empurra-empurra para “entrar naquele tipo de igreja”. Achou uma loucura. Começou a contar para os amigos.

Não demorou, porém, para que percebesse que os turnos de até 12 horas na segurança abriam “muito tempo para pensar”. “Decidi tomar notas do que eu via. Esse trabalho, você sabe, é bem entediante. Então eu fazia meio de piada. Pensei que olhar ao redor dessa forma ia me manter ocupado.”

As anotações tomaram corpo e depois vieram a integrar “De Pé, Tá Pago”, seu primeiro romance, publicado na França em 2014. A edição em inglês veio oito anos depois e fez Gauz se tornar finalista do prêmio Booker Internacional, um dos mais respeitados do mundo.

O livro acompanha diversos homens que trabalham como seguranças, contando os bastidores da função com atenção às relações trabalhistas e à situação instável que é a vida imigrante, que emenda cargos temporários em empresas impessoais. Como ele mesmo escreve: “o conjunto de profissões em que é necessário ficar de pé para receber uma mixaria”.

Mas avança para uma elaboração panorâmica da situação dos africanos residentes na França -se são absolutamente múltiplos em personalidades e culturas, acabam tendo muitas experiências semelhantes. A obra cobre gerações que vão dos anos 1960 -apelidada a idade do bronze- até dias mais atuais -a idade do chumbo. Muita coisa muda para tudo continuar igual, sugere o livro.

Boa parte da obra é composta de notas inspiradas nas notas feitas por Gauz, incluindo muitas observações estereotipadas sobre identidades e comportamentos, recaindo especialmente sobre mulheres.

“Parece que na China não existe a palavra ‘nádega’. Lá, eles dizem ‘parte inferior das costas’. Não dá para inventar uma palavra para uma parte do corpo que não existe”, escreve a certa altura. “Geralmente, as mulheres gordas começam provando roupas menores primeiro… Antes de sumirem discretamente com a roupa de tamanho adequado nos provadores”, acrescenta em meio a uma série de anotações.

“A porcaria do mundo é assim, cara”, diz ele quando o repórter levanta essa questão. “Quando você vem à África como um homem branco, você pode descrever as pessoas a partir da sua história, da sua mente, seus clichês, e você não quer que o contrário aconteça. Nós fomos inventados como um grupo étnico, mas não autorizam que façamos o mesmo. Tive prazer em fazer isso: e se alguém essencializar você da maneira como você faz?”

DE PÉ, TÁ PAGO

Preço R$ 89,90 (176 págs.)

Autoria Gauz

Editora Ercolano

Tradução Diogo Cardoso

FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY 2025

Quando Até 3 de agosto

Onde Centro histórico de Paraty (RJ)

Preço De R$ 39 a R$ 135 por mesaIngressos e mais informações flip.org.br