PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Depois de uma mesa densa em que se discutiu um tipo de literatura que se ocupa de traumas, a escritora e jornalista portuguesa Anabela Mota Ribeiro escolheu um jeito doce para se despedir do público na manhã desta quinta-feira (31), no segunda encontro do dia na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, deste ano: cantando uma música de Roberto Carlos.

A autora, que lança no Brasil “O Quarto do Bebê”, da editora Bazar do Tempo, escolheu “Folhas de Outono”, uma canção que não está entre os hits mais conhecidos do cantor no Brasil. “Vou tentar não chorar”, disse ela antes de começar.

Ribeiro escolheu a música porque se lembrou de um momento, em uma viagem, quando ficou escutando a canção com a mãe no computador. “Minha mãe é uma mulher muito simples, que começou a trabalhar muito cedo e sofreu muito. Penso nessa canção com muito carinho”, disse.

Ela explicou que o cancioneiro de Roberto faz parte da história de amor dos pais e só recentemente foi em família, pela primeira vez, ver um show do rei em Lisboa. “Chorei do começo ao fim, foi como se estivéssemos vendo o casamento dos nossos pais”, afirmou.

Aplaudida pelo público, a escritora encerrou assim uma conversa de temas difíceis ao lado da francesa Neige Sinno. Ribeiro começou a trabalhar no romance durante a pandemia e enquanto enfrentava um câncer de mama. Já Sinno trata dos estupros que sofreu do padrasto da infância até a adolescência, quando resolveu denunciá-lo.

Com esses temas, não foi de surpreender o silêncio absoluto do público durante toda a conversa das duas, com falas contundentes de lado a lado. Foi uma mesa cheia de relatos pessoais, mas sem se desligar de temas de composição e forma literária.

A crítica Rita Palmeira fez uma mediação detalhista, que parecia partir de uma leitura atenta da obra das duas. Pelo material em discussão, foi natural que o encontro se desviasse do tom de leveza que vinha marcando uma Flip com Paulo Leminski como homenageado.

Um dos momentos altos do debate se deu quando as duas autoras discutiram a ideia de salvação pela literatura -um tema que tinha aparecido em tom bem mais otimista na edição do ano passado da Flip. Neige Sinno deve ter surpreendido a plateia ao recusar essa ideia, que vê como um clichê.

“É algo que se espera de uma vítima, que eu esteja melhor, que eu me salve. O mais importante para mim não é dizer que a literatura não é capaz de me salvar, mas explorar esse paradoxo. Eu não estou salva e não quero ser salva” disse a francesa.

“Quero estar bem no meio desse paradoxo. Tento recusar o clichê de que temos que fazer tudo para nos sentirmos melhor. Abandonamos a esperança quando exploramos a complexidade daquilo que não pode ser salvo pela literatura. Não estou salva pela literatura, pelo amor ou pela terapia. Minha cólera está intacta.”

Ribeiro complementou comentando sua experiência com a psicanálise -na qual a terapia se baseia no uso da palavra-, falou em tom um pouco mais otimista, mas não totalmente.

“Não sei se a palavra me salvou, se o amor me salvou -acho que a resposta é sim. Mas é sempre uma salvação incompleta, porque há sempre um reduto onde estamos absolutamente a sós com nossas questões primordiais”, disse ela.

Mais cedo, a primeira mesa do dia reuniu o poeta e cronista Fabrício Corsaletti e Lilian Sais, também autora de livros de prosa e poesia. Os dois discutiram a relação entre a vida e a literatura e nota mais descontraída, apresentando a escrita como expressão de uma força vital.

“Nunca entendi bem essa questão de literatura e vida, porque para mim não tem outra relação. Eu uso o que for necessário, é aquela ideia de que o cara rouba até a mãe para colocar um texto de pé”, disse Corsaletti, que lança “Um Milhão de Ruas”.

Os dois defenderam uma escrita que nasce da relação com o prosaico, que pode ser despretensiosa mesmo quando ligada à tradição. Sais, autora de “A Cabeça Boa”, deu um belo depoimento sobre como sua relação com a escrita evoluiu; ela contou que só passou a sentir prazer escrevendo quando renunciou a um certo culto à erudição e parou de tentar agradar um leitor abstrato.

“Meus textos eram sisudões, e eu não sou assim. Fui matando algumas coisas ao longo dos anos”, disse. “Comecei pelo grande cânone, entendi que não precisava ficar preso ao grande autor. A última coisa que matei foi o leitor, com ‘L’ maiúsculo. Ele não existe, o que existe são pessoas que leem. Mas ficamos o tempo todo achando que temos que fazer um pacto com essa abstração. Depois disso, eu me vi diante de uma liberdade radical.”

FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY 2025

Quando Até 3 de agosto

Onde Centro Histórico de Paraty (RJ)

Preço De R$ 39 a R$ 135 por mesaIngressos e mais informações flip.org.br