SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O espetáculo “ORioLEAR” nasce de um sonho transformado em pesquisa —uma investigação sobre as heranças ditatoriais que ecoam na atual devastação ambiental. Newton Moreno, seu criador, conta que a peça surgiu de viagens pelo Cone Sul e da urgência em discutir “a elite do atraso, essa burguesia predatória” brasileira.

O resultado é uma adaptação visceral de Rei Lear que transpõe o drama shakespeariano para os conflitos fundiários da Amazônia contemporânea. Afinal, “Shakespeare ajuda a gente a pensar tudo”, afirma Moreno.

No centro da trama está Seu Lear, vivido por Leopoldo Pacheco, um grileiro que personifica o projeto de ocupação predatória da Amazônia. O ator, que há anos colabora com Moreno —desde os tempos do grupo Os Fofos Encenam— descreve a parceria como um encontro artístico potente.

“Quando vi o Newton em ‘Sacromaquia’, da [diretora] Maria Thaís, eu pensei: ‘Quem é esse cara? Que ator fantástico!’ Depois, trabalhei com ele em ‘Deus Sabia de Tudo’ [espetáculo que estreou em 2001], e desde então desenvolvemos um grupo de trabalho que vem criando juntos há muitos anos.” Essa cumplicidade se reflete no processo de “ORioLEAR”, que, segundo Pacheco, “vem de uma conjuntura muito feliz, de um dramaturgo com um leque impressionante de pensamento.”

Sua história começa nos anos 1970, quando Lear migra do Sul para o Pará atraído pelo lema oficial do Programa de Integração Nacional instituído pelo regime: “uma terra sem homens para homens sem terra”. A peça começa com uma festa grotesca em comemoração aos 80 anos do patriarca, onde ele, cercado por políticos, juízes e pecuaristas, decide repartir suas terras entre as filhas como quem divide um butim de guerra.

As filhas representam os múltiplos rostos da destruição: Goneril, papel de Sandra Corveloni, e o marido Albano, personagem de Jorge de Paula, encarnam a aliança entre agronegócio e neopentecostalismo; Regininha, vivida por Michelle Boesche, é a herdeira alcoólatra dos pastos, casada com Conrado, papel de José Roberto Jardim, o especulador de terras viciado em cocaína.

Contra esse clã predatório, surge Cordélia, a filha que ousa desafiar o pai ao lado de um indígena, personagem que traz a voz dos verdadeiros donos da terra. “A chegada do Ronny [Abreu], um ator indígena com toda a autoridade para falar sobre o que estamos discutindo, foi fundamental”, destaca Pacheco, que também assina o figurino e mergulha na complexidade do personagem.

“Descobrir esse Lear do Newton, lidando com a Amazônia, os territórios indígenas, o excesso de poder… tem sido uma experiência incrível.”

O gesto mais potente da adaptação é a transformação do rio Lear em protagonista. “Transferimos o trono para as águas”, explica Moreno. Quando o indígena exige “a devolução do nome do rio”, está reivindicando toda uma cosmologia esquecida. A peça opera essa inversão radical: se em Shakespeare a natureza reflete a desordem humana, aqui é a humanidade que espelha a agonia da terra.

“ORioLEAR” gira em torno de uma pergunta urgente: ainda dá tempo? Moreno reflete que “Shakespeare nos ensina que toda tragédia começa com a recusa de ouvir a verdade”. Ao revelar como a ditadura militar colaborou com a sentença de morte da Amazônia e como a má distribuição de terras é atávica em nossa construção como nação, a peça faz do teatro um espaço de catarse coletiva. “Tem momentos em que deixamos claro: o ataque à natureza é um ataque a nós mesmos”, diz o diretor.

Resta saber se nossa sociedade, como o velho Lear, será capaz de reconhecer sua loucura antes que a última árvore caia — se conseguiremos, nas palavras de Moreno, “devolver a coroa ao rio” e resgatar o futuro que ainda nos resta. Para Pacheco, o processo é intenso, mas recompensador: “Muito trabalho em pouco tempo, mas estamos felizes. É um privilégio estar com essa equipe incrível, discutindo temas que nos dizem tanto.”

ORIOLEAR

– Quando De qui. a sáb., às 20h; dom., às 19h. Até 17/8

– Onde Itaú Cultural – Av. Paulista, 149, SP

– Preço Grátis, retirada de ingressos em itaucultural.byinti.com

– Classificação 16 anos

– Autoria William Shakespeare

– Elenco Sandra Corveloni, Ronny Abreu e Leopoldo Pacheco

– Direção Newton Moreno