WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Crítico ferrenho de seu país, o historiador israelense Ilan Pappe chega ao Brasil nesta semana em um momento dramático da crise de Gaza. A mensagem que traz é dura. “Fazer intencionalmente uma sociedade passar fome é genocida, assim como atirar em pessoas que estão buscando comida”, diz ele à reportagem.

Pappe é um dos convidados mais rumorosos desta edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que começa na quarta. Terá uma mesa só para ele, no dia 1º, o que deve enfurecer seus detratores e fazer barulho. A mediação será de Arlene Clemesha, professora da Universidade de São Paulo.

Depois tem três agendas em São Paulo para lançar o livro “A Maior Prisão do Mundo” —primeiro na terça, dia 5, na Casa de Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo, e no dia seguinte na Faculdade de Direito da mesma universidade e na Festa Literária Internacional das Editoras Independentes, a Flipei.

Ao justificar o convite ao historiador, em junho, a curadora Ana Lima Cecilio afirmou querer “fornecer instrumentos para tirar conclusões”. “É um professor muito sério, uma autoridade respeitada. Nós entendemos a delicadeza da discussão, mas com toda essa barbaridade de crianças morrendo, é um sujeito que olha para isso de um jeito sensato, com muita bagagem.”

O autor de 70 anos se formou na Universidade Hebraica de Jerusalém e fez o doutorado em Oxford, no Reino Unido. É um dos chamados “novos historiadores” israelenses, um famoso grupo que desafiou, a partir dos anos 1980, as narrativas tradicionais do país. Sua geração foi responsável, por exemplo, por repensar a fundação de Israel em 1948 e recontar a expulsão de 700 mil palestinos.

Em 2006, Pappe lançou “A Limpeza Étnica da Palestina”, até hoje sua obra mais conhecida. A tese principal do texto é de que Israel forçou a saída dos palestinos em 1948 tendo em vista uma “limpeza étnica” daquela região. São também dele “Dez Mitos Sobre Israel” e “Brevíssima História do Conflito Israel-Palestina”, disponíveis em português pelas editoras Tabla e Elefante.

Essa carreira crítica enfrenta resistência dentro do seu país. É conhecida, por exemplo, a desavença de Pappe com o historiador Benny Morris, que sugere que seu trabalho é demasiado político e suas conclusões são resultado de sua ideologia.

Pappe deixou a Universidade de Haifa, onde lecionava, após apoiar um boicote acadêmico de Israel. Disse, à época, que recebia ameaças de morte. Mudou-se para o Reino Unido em 2007 e hoje dá aula na Universidade de Exeter, onde lidera um importante centro de estudos sobre a Palestina.

Um dos principais pontos de discórdia é a tese de Pappe, apoiada em documentos oficiais, de que Israel tinha desde o início o intuito de expulsar os palestinos. É a essa ideia que ele retorna ao avaliar a crise atual.

Em entrevista à Folha por email, ele afirma que em 2023 o Hamas “deu um pretexto” para que o governo de Binyamin Netanyahu se aproveitasse para finalmente obliterar Gaza, em suas palavras.

Refere-se ao ataque terrorista do Hamas que deixou 1.200 mortos em Israel em 7 de outubro daquele ano. O revide israelense, por sua vez, matou ao menos 60 mil palestinos, segundo o Ministério da Saúde local, controlado pela facção. Parte da comunidade internacional diz que a resposta israelense é desproporcional e inclui crimes de guerra.

Pappe descreve a campanha israelense em Gaza como um genocídio. “Palestinos estão sendo mortos por causa de sua identidade, etnia e nacionalidade”, diz. “A destruição de hospitais, escolas, universidades, bibliotecas e construções residenciais não são uma necessidade militar, são a destruição da infraestrutura que possibilita que as pessoas vivam.”

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já usou também a palavra genocídio, que Israel e seus aliados rejeitam. Tel Aviv descreve suas ações como uma necessidade para neutralizar o Hamas, que trata como uma ameaça à existência do Estado israelense.

No episódio mais dramático dessa crise, começaram a circular nas últimas semanas imagens de crianças palestinas desnutridas. Segundo as autoridades da Faixa de Gaza, que está sob o controle do Hamas, 122 pessoas já morreram de fome no território. Mais de 80 delas eram crianças. Um porta-voz da Unicef, a agência da ONU para a infância, descreveu Gaza como uma “história macabra” da humanidade.

Dezenas de organizações humanitárias emitiram um comunicado conjunto dizendo que Israel estava impedindo ou dificultando a distribuição de comida em Gaza, algo que Tel Aviv nega. Além disso, mais de 800 palestinos foram mortos nas últimas semanas tentando buscar alimento, a maior parte devido a disparos de soldados israelenses.

Sob pressão internacional, Israel anunciou no sábado (26) que retomaria o lançamento aéreo de comida para a Faixa de Gaza, além de criar corredores humanitários para permitir a entrega de auxílio.

“A sociedade israelense é doutrinada do berço ao túmulo com a percepção de que os palestinos são sub-humanos”, diz Pappe. A situação piorou, na sua avaliação, com a ascensão de forças políticas messiânicas e racistas. “Essa ideologia agora controla o governo israelense e tem enorme influência no Exército, nas forças de segurança e na mídia.”

Em alguma medida, Pappe é uma voz isolada em Israel. Seu nome suscita reações fortes entre quem não adere à sua visão de mundo, associada mais à esquerda.

“Os intelectuais e acadêmicos israelenses não questionam o sionismo e tratam da crítica internacional como antissemitismo”, argumenta. Sugere que lhes falta “coragem moral”. “Como nós sabemos pela história, silenciar quando crimes são cometidos no seu nome não absolve ninguém desses crimes.”

ILAN PAPPE NO BRASIL

– Quando Sexta (1º), às 17h, na Festa Literária Internacional de Paraty; terça (5), às 18h, na Casa de Cultura Japonesa da Universidade de Sâo Paulo; quarta (6), às 10h, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e às 15h, na Flipei, na Praça das Artes (SP)

A MAIOR PRISÃO DO MUNDO – UMA HISTÓRIA DOS TERRITÓRIOS OCUPADOS POR ISRAEL NA PALESTINA

– Preço R$ 80 (384 págs.)

– Autoria Ilan Pappe

– Editora Elefante

– Tradução Alexandre Barbosa de Souza