SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A curadora da Flip, Ana Lima Cecilio, estava sem luz depois de uma chuvarada em Paraty quando atendeu à reportagem nesta segunda. Já fazia meia hora que estava aflita, sem tomada para recarregar o celular -tensão familiar a quem esteve no apagão que tomou a cidade na penúltima edição, em novembro de 2023.
Era de tarde, então ela não estava no escuro -e parece também enxergar com mais clareza sua função como curadora do festival literário mais prestigioso do país, um cargo que assume pela segunda vez consecutiva.
“Os convites estão mais organizados e os processos, mais consistentes”, diz a livreira, elogiando a afinação da equipe da festa, que começa nesta quarta, dia 30, e vai até domingo, 3 de agosto.
Essencial para essa melhor estrutura, diz ela, foi a rapidez com que se bateu o martelo na data da festa deste ano -que pela primeira vez desde 2019 acontece no inverno, época em que nasceu e se manteve por 17 edições.
A pandemia desregulou o calendário e a Flip penou para conseguir se reorganizar de modo a ocupar esse período entre julho e agosto, mais conveniente para o comércio e o turismo local e mais favorável para convidar autores estrangeiros no meio das férias.
No ano passado, a festa foi em outubro. Quatro meses depois, já cravou que a próxima edição seria agora em julho, resultando no menor intervalo da história entre duas Flips, só de nove meses.
Cecilio diz que o tempo mais curto “valeu a pena” porque a definição da data foi antecipada o suficiente para selar convites -muitos deles já estavam adiantados para autores que não conseguiram vir em outubro passado.
Um deles foi o israelense Ilan Pappe, convidado que agora deve fazer barulho. Crítico contundente de Israel, chega ao Brasil em um dos momentos mais dramáticos do conflito em Gaza, com a reação internacional escalando com notícias de que a fome na região alcança níveis catastróficos.
Se não é novidade alguma que a Flip toque em temas políticos, é incomum que enfie um dedo tão flagrante em feridas tão abertas, no que Cecilio define como uma tomada de posição desta curadoria, de responsabilidade dela.
“Estamos vendo a confirmação do cenário terrível que Pappe já pintava”, afirma a editora, ressaltando que o historiador com doutorado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, tem credencial para fazer uma abordagem de alto nível -é uma voz de dentro do conflito, segundo ela, que se alicerça em estudos bem embasados.
“A curadoria não pode ter medo de controvérsia”, afirma Cecilio. “Essa posição é fundamental nesse momento. Não vejo outro jeito de encarar essa questão a não ser como a tentativa de um Estado exterminar um território.”
Essa postura curatorial também aparece, segundo lembra a própria livreira, em uma mesa que reúne duas autoras com literatura em torno do aborto, Dahlia de la Cerda e Dolores Reyes, militantes de uma causa “importante de levar nesse momento”.
Outra figura que salta aos olhos no programa é a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, anunciada de última hora em um palco que ocupará sozinha, assim como Pappe.
Questionada sobre o ruído de convidar uma ministra de Estado para um evento que tem patrocínio do governo federal, por meio da Lei Rouanet, Cecilio afirma que Marina “tem autoridade para além de qualquer governo” e é chancelada por uma “vida de militância em defesa da floresta”.
A curadora aponta que o convite não passou por engrenagens estatais e aconteceu após a fatídica sessão do Congresso em que Marina, filiada à Rede, ouviu do senador Plínio Valério, do PSDB, que ela não merecia respeito. Foi o que fez a curadoria se decidir a abrir espaço para que falasse.
Mas nem só de dramas vive a Flip, pelo contrário. Quando o repórter pergunta duas mudanças que quis imprimir a sua segunda edição, Cecilio cita o aumento do espaço para a poesia e o humor.
Quanto à primeira, diz se arrepender de ter deixado os poetas quase de fora da festa do ano passado -a única autora do gênero era a carioca Bruna Mitrano- e agora aposta na popularidade do homenageado, Paulo Leminski, para celebrar a poesia.
A abertura na noite desta quarta será de um poeta próximo ao paranaense, o também cantor Arnaldo Antunes, e a programação principal ainda tem Mar Becker, Fabrício Corsaletti, Lilian Sais, Marília Garcia e Alice Ruiz.
Aparece ainda no palco paralelo Caprichos e Relaxos, aberto à declamação de versos de convidados. Aliás, a Flip terá um leque de 35 casas parceiras com programação própria nesta edição, inclusive a já tradicional da Folha.
E Cecilio quer que essa Flip tenha mais graça. Para isso conta com gente como Gregorio Duvivier, que leva ao palco uma adaptação do sucesso teatral “O Céu da Língua”, e Ricardo Araújo Pereira, colunista da Folha. Afinal, como ensinou Leminski, tão importante quanto caprichar numa boa festa é aproveitar para relaxar.