BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie definiu a origem do preconceito racial em seu ensaio “O Perigo de uma História Única”. “O problema do estereótipo não é que ele seja falso, mas que é incompleto. Ele faz com que uma história única se torne a única história”, escreveu a escritora em uma frase que dá sentido à existência do Festival Latinidades, em Brasília. O evento tem como propósito celebrar a pluralidade de vivências das mulheres negras latino-americanas e fugir das “histórias únicas”.

Nesta edição, que marcou seus 18 anos e se encerra nesta quinta-feira (31), o evento homenageou a filósofa, antropóloga e ativista Lélia Gonzalez, pioneira do pensamento feminista negro no Brasil. No Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, 25 de julho, um auditório lotado no Museu Nacional da República recebeu um tributo à sua vida e obra.

Coube à atriz e poeta Elisa Lucinda abrir a programação com um recital poético, preparando o público para uma série de falas que evidenciaram o legado de González. A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, relembrou como sua trajetória e a de sua irmã, Marielle Franco, foram atravessadas pelo pensamento da intelectual. Já a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, destacou como González formulou conceitos capazes de nomear a experiência negra com autonomia.

Ao cunhar termos como “amefricanidade” e “pretoguês”, González rompeu com epistemologias coloniais e ofereceu um vocabulário próprio ao pensamento negro. “Ela nos deu ferramentas para pensar a resistência com consistência e sofisticação teórica”, afirmou a professora Dulce Pereira, ex-presidente da Fundação Palmares.

Para a neta da pensadora e diretora do Instituto Memorial Lélia Gonzalez, Melina Lima, ver esse legado celebrado por tantas pessoas é emocionante: “Lélia vive. Mesmo tendo partido há 31 anos, ela continua extremamente atual”.

O espírito de multiplicidade também atravessou os palcos do festival na noite de sábado (26). Luedji Luna lançou sua nova turnê, que compreende seus dois novos discos, “Um Mar pra Cada Um” e “Antes que a Terra Acabe”. Em show introspectivo, a artista falou de rupturas, ancestralidade e apocalipses contemporâneos, misturando jazz, neosoul e ritmos afro-brasileiros. No momento mais comovente da noite, ela dedicou a música “Jóia” a uma ex-amiga: “Amizade é coisa divina. Espero que um dia ela reconheça isso”.

Em uma apresentação mais política, Larissa Luz trouxe uma versão rock do repertório de Gilberto Gil. “Para vocês que não aguentam mulheres negras no poder: aqui pra vocês!”, disse logo após cantar “Punk da Periferia”. A cantora ainda entoou “Sinais de Fogo”, como uma homenagem à Preta Gil —que morreu no último dia 20—, sendo recebida por uma plateia emocionada.

Já Zezé Motta, com um vestido em patchwork e um penteado que remetiam a uma rainha africana, cantou canções como “Magrelinha” e “Tigresa”, além de outras de Caetano Veloso e Luiz Melodia.

Sua apresentação —que contou com a participação de Malía—, no entanto, foi interrompida antes do fim por falta de tempo. Em suas redes sociais, ela expôs seu incômodo. “É contraditório ver um festival que se propõe a enaltecer mulheres silenciar justamente uma delas no palco”, escreveu a artista. Em nota oficial, a organização do evento pediu desculpas. “Erramos. Vamos refletir, melhorar, aprender com os erros e seguir firmes no nosso propósito”, disse o comunicado.

Passaram ainda pelo palco do Latinidades as cantoras Duquesa, que tem se tornado nome incontornável de festivais pelo país, Karol Conká, que mostra resiliência após o cancelamento, além de Nessa Preppy, IAMDDB e Isa Marques.

O Latinidades também se propõe a ser uma vitrine de novas artistas. O Pitch Mulheres Negras Movem a Música foi uma espécie de minifestival em que dez artistas negras de diferentes regiões do Brasil apresentaram seus trabalhos para uma banca formada por curadores, produtores e representantes da indústria fonográfica.

A rapper Bione, de Recife, foi a vencedora da competição e garantiu um prêmio de R$ 10 mil, além de uma vaga no palco do festival em 2026. A iniciativa é voltada à formação de mulheres negras na cadeia produtiva da música, e já ofereceu oficinas em temas como gestão de carreira, mídia digital e economia da música.

O Museu Nacional da República —com sua arquitetura que remete ao Memorial da América Latina em São Paulo— foi mais uma vez o palco de encontros entre múltiplas mulheres negras. Com entrada gratuita mediante retirada de ingressos, o festival até agora reuniu mais de 10 mil pessoas em uma semana de atividades. Ali, projeções visuais afrofuturistas, criadas com inteligência artificial ilustraram a diversidade dos corpos e imaginários de mulheres negras, a que o evento se propõe abranger.

A jornalista viajou a convite do Festival Latinidades.