SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A obra de Mar Becker já foi descrita como “evânica”. A descrição faz referência a Eva, responsável por levar a raça humana ao sofrimento e à morte, segundo a Bíblia. Isso porque a autora gaúcha traz as mulheres, com suas dores e belezas, no centro de sua produção —ela diz faz sentido essa definição sagrada do escritor José Francisco Botelho no posfácio de seu livro “Sal”.

“Há uma emergência mulher, há um devir mulher no texto que aparece por diferentes marcas, seja por aquele que comumente foi o ambiente habitado sobretudo por mulheres, que é a casa, seja por profissões muito ligadas a mulheres, a cabeleireira, a sala de costura, o salão de beleza”, diz a poeta em entrevista à Folha.

A escritora gaúcha participa pela primeira vez da programação principal da Flip nesta quinta, ao lado da paraense Monique Malcher.

Em suas obras, Becker explora não apenas o feminino, mas também o corpo, a vida doméstica, a infância, a relação entre mãe e filha e os lugares pelos quais passou. Figura perene em sua obra é Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, sua cidade natal —que é ora centro, ora margem.

No seu lançamento “Noite Devorada”, ela se dedica a falar de amor mantendo o feminino no núcleo de seu universo e explora a relação do sentimento com o medo, a perda, o desejo e os equívocos.

“Ser uma mulher tocada pela desaparição”, escreve ela, que também é autora de “A Mulher Submersa”, da Urutau, “Canção Derruída”, da Assírio & Alvim, e “Cova Profunda É a Boca das Mulheres Estranhas”, do Círculo de Poemas, que edita também o livro novo.

Seu primeiro contato com a poesia ocorreu ainda na adolescência, quando passava tardes na biblioteca pública da cidade ao lado de sua irmã gêmea, que preferia prosa. Lá, descobriu escritores como Augusto dos Anjos e Cruz e Sousa, algumas de suas primeiras referências.

Nasceu poeta por meio de um blog, que mantém até hoje. O espaço é prático, segundo ela, pois permite revisitar com mais facilidade o conteúdo antigo.

“Lugares que se fecham, olhos. Como um sonho que reflete outro sonho líquido lácteo. O banheiro da escola de tua infância e a porta onde tudo é letra em líquido corretivo, e o telefone de não-se-sabe-quem”, escreveu na plataforma Blogger em 2013.

Anos depois, cresceu ao compartilhar sua escrita em redes sociais, como o Instagram. No exercício de criar sua própria linguagem, explorou imagens vistas ao longo da vida, como das salas de costura e dos salões de beleza de Passo Fundo e da mãe açougueira.

“Esse tipo de ambiente, o ambiente da vida acontecendo, reverbera muito naquilo que eu faço. Eu tento ir para esses lugares com os sentidos todos à flor, com o olhar à flor, com os ouvidos à flor para capturar tudo aquilo que possa chegar de forma espontânea”, diz ela.

Entre suas influências está Hilda Hilst. Nos versos de Becker, há temas explorados pela autora de “A Obscena Senhora D”, como a paixão e o erotismo. Adélia Prado é outra inspiração, dando as caras nos temas sobre a vida doméstica.

Becker também aprende com seus contemporâneos, muitos dos quais conhece por meio das redes sociais. Entre eles, Ana Costa dos Santos, autora de “Fabulário”, e Ana Estaregui, que escreveu a orelha de “Noite Devorada”.

“Eu tenho interesse nessa busca que corre um pouquinho à margem, às vezes, daquilo que está sendo mais divulgado, quase como quem gosta de seguir explorando às cegas.”

Mar Becker é, na verdade, Marceli Andresa Becker. Usar apenas a primeira sílaba do nome de batismo poderia ser apelido, mas tem sentido poético. Quando tomou a decisão quis “sustentar numa palavra muito pequena, mar, a imagem do imenso, a devastação”, escreve em “Noite Devorada”.

“O sentido de reduzir o nome para mar era compor a imagem mais vasta com a mínima sílaba possível dentro de um nome que ainda se referisse a mim. Para dizer o seguinte: o pouco corpo deseja muito. O pouco corpo deseja a extrapolação, a devastação, tal qual a palavra amar comporta o tamanho do mar.”

NOITE DEVORADA

– Preço R$ 69,90 (120 págs.); R$ 48,90 (ebook)

– Autoria Mar Becker

– Editora Círculo de Poemas

MAR BECKER NA FLIP

– Quando Quinta-feira (31), às 17h, na mesa ‘Todas as Formas’, com Monique Malcher

– Onde Centro Histórico de Paraty

– Preço R$ 135 a inteira