CUIABÁ, MT (FOLHAPRESS) – A pesquisadora Luisa Mota, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), não esquece o dia em que ouviu o som dos queixadas na Reserva Particular do Patrimônio Natural do Cristalino, em Alta Floresta, a 790 km de Cuiabá. Dedicada aos estudos ecológicos, ela estava acompanhada em Mato Grosso da também pesquisadora Noemy Seraphim, especialista em borboletas.

O som dos queixadas preocupou Luísa, que morou por um ano na reserva para realizar sua pesquisa de doutorado e sabia que o animal é temido até mesmo pela onça-pintada, por causa de sua agressividade e capacidade de atacar em grupo.

Ela conta ter ouvido o som deles e não ver a colega Noemy, do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo). “Voltei para dar uma bronca nela, mas, quando olhei, ela havia encontrado os bichos [as borboletas]. Foi muito emocionante encontrar a interação entre as lagartas, as formigas e as cochonilhas.”

Elas são duas dos quatro autores de um estudo publicado no último dia 10 na revista Neotropical Entomology, que identificou a interação inédita entre uma nova espécie de borboleta, a Annulata kaminskii, descoberta por Luísa, com cochonilhas (insetos sugadores que se alimentam da seiva das plantas) e formigas que vivem em bambuzais amazônicos.

O estudo foi feito pelo Laboratório de Ecologia e Sistemática de Borboletas da Unicamp, liderado pelo professor André Freitas.

A pausa no meio da trilha permitiu que as pesquisadoras identificassem que as lagartas da A. kaminski se alimentam de um néctar produzido pelas cochonilhas que vivem no bambuzal. Após consumirem o néctar, as lagartas expelem outro néctar, que é consumido pelas formigas.

Em troca, as formigas oferecem proteção às lagartas e às cochonilhas, evitando que predadores cheguem ao local.

“A maioria das lagartas se alimenta de folhas e de outros tecidos vegetais. Essa lagarta, em vez disso, alimenta-se apenas do néctar e da cera, que são produzidos pelas cochonilhas —que são insetinhos bem pequenos, semelhantes aos pulgões”, explica Luísa.

Na maioria dos casos, segundo a pesquisadora, as formigas se alimentam do néctar das cochonilhas, “mas neste caso a lagarta acaba se transformando em um intermediário, oferecendo néctar às formigas”.

A descoberta da relação entre os diferentes insetos enriqueceu ainda mais a identificação da nova espécie de borboleta, que recebeu o nome do pesquisador brasileiro Lucas Kaminski, da Universidade Federal de Alagoas, especialista na interação entre borboletas e formigas.

“Essa é a primeira vez que observamos um sistema com quatro níveis tróficos envolvendo borboletas, formigas, escamas de bambu e cochonilhas”, afirma Noemy Seraphimm. “Encontramos as larvas interagindo de forma muito especial, algo nunca documentado antes. Essa história de vida reforça as particularidades da fauna amazônica e a importância de protegê-la.”

A Annulata kaminskii é a segunda espécie de borboleta descoberta na reserva do Cristalino, mantida pela Fundação Ecológica Cristalino. Em 2019, Luísa publicou a descoberta da Cristalinaia vitoria.

Segundo a pesquisadora, só na região do Cristalino existem mais de mil espécies de borboletas. “A título de comparação, isso é mais do que o dobro do que há em toda a Europa. Uma quantidade muito grande dessas borboletas não foi descoberta ou não foi estudada a ponto de ser identificada porque muitas vezes espécies muito próximas são bastante parecidas.”

A delicadeza e a sensibilidade da interação entre borboletas, cochonilhas e formigas detectadas na região do rio Cristalino é tamanha que foi malsucedida a tentativa dos pesquisadores de criar em laboratório as lagartas da Annulata kaminskii.

Em laboratório, as lagartas da borboleta recém-descoberta sobreviveram apenas por duas semanas alimentadas com uma solução de água, açúcar mascavo e gema de ovo.

“Nós não conseguimos fazer com que chegassem à fase adulta, mas o trabalho de DNA feito pela pesquisadora Patrícia Avelino Machado confirmou que eram espécies da nova borboleta”, afirma Luísa. “É possível criar a maioria das lagartas facilmente contanto que você dê o tipo de folha que ela se alimenta, mas nesse caso não foi possível porque ela tem um modo de vida muito especializado e faltou o néctar das cochonilhas.”