SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os 31 anos vivendo entre becos, barracos, agruras e abandonos de favelas do extremo leste de São Paulo deram ao youtuber Alessandro Vieira Galvão Silva, 31, o Mochileiro Ricky, autoridade e relevância que, rapidamente, têm feito dele um expoente da periferia nas redes sociais.

Em um de seus relatos mais contundentes já publicados, com quase um milhão de visualizações, Ricky, após ter trabalhado a noite toda na lavanderia de um motel, grava a volta para casa, mostrando ruas degradas, moradias em frangalhos e córregos apodrecidos enquanto critica o que chama de romantização da pobreza.

“Não fica nessa de que a favela venceu. Não venceu, nada. Aqui tá tudo destruído, quando chove alaga. Vence quando você sair daqui, quando prosperar, quando tiver uma vida melhor. Vence quando você começa a ler, a estudar”, diz ele no vídeo. Enquanto gravava, ele passou por carros fazendo racha na via sem calçada e sem urbanização.

Embora já tenha feito diversas tentativas, o youtuber ainda não conseguiu deixar Cidade Tiradentes, onde vive numa construção de cerca de 10 m² que ele mesmo ergueu.

Dados da Prefeitura de São Paulo indicam que a região tem 219 mil habitantes. Relatório do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), de 2022, aponta que a área tem maioria de negros e pardos (56%), concentra 17 favelas e abriga alguns dos piores indicadores sociais da capital.

Ele é caçula de oito irmãos —um deles, usuário de drogas, que ele já encontrou na rua alucinado enquanto gravava— e trabalha desde menino, quando perdeu o pai, que morreu atropelado por um ônibus e um caminhão quando saia de um bar, alcoolizado. Por várias vezes, já teve de deixar os barracos onde vivia.

“Comecei catando papelão pelas ruas na parte da manhã. Comia o que achava no lixo. À tarde, ia para escola, onde consegui ficar até o oitavo ano. Nos finais de semana, não tinha descanso, trabalhava ajudando na feira.”

Quando completou 18 anos, foi trabalhar como ajudante de entregas. “Foi ali que comecei a ver que tinha gente que ganhava um bom dinheiro de forma honesta, empreendendo. Na favela, quando circula muito dinheiro num lugar só, tem algo errado.”

As tentativas de melhorar de vida e deixar a favela incluíram ainda trabalhos em uma rede de hortifrutis, com promoção de artistas de funk e na venda de salgados congelados.

“O empreendedor de favela é assim: se der errado, você não volta para o zero. Você volta para o menos que zero. Para empreender de novo, além de ter de lidar com o trauma, não tem para onde correr, para quem pedir ajuda.”

Atualmente, ele já vive dos rendimentos gerados por seus vídeos. “Vivo só da monetização do canal, não tenho propaganda, parceria, nada. Não confio em muitas coisas por enquanto, talvez no futuro. Eu sempre ganhei pouco dinheiro, então, o que vem hoje tem sido suficiente para me manter.”

Receber críticas ao que mostra também está na rotina do youtuber. Em uma das postagem sobre como moradores poderiam se inscrever para saírem de barracos e irem para apartamentos em construção pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), Ricky sofreu resistência dos que não concordam com as condições ofertadas ou que não querem deixar suas moradias.

“Apanho muito por isso, mas sigo. Sempre gostei de observar antes de falar. Quando falo é o que realmente penso. Não romantizo a pobreza. Favela é um lugar ruim, ponto. Tem gente que quer dizer que tem lado bom, mas eu mostro o que estou vendo”, diz.

Ricky foi pessoalmente à sede da CDHU, no centro da capital paulista, buscar informações. Diz que não foi recebido para tirar suas dúvidas.

“Sou a favor do que estão fazendo, acabando com a favela e oferecendo moradia digna, mas sou contra a forma. Colocar uma placa dizendo que vão remover casas em dois meses é cruel. Não passo pano. As pessoas invadiram? Invadiram. Mas isso não justifica fazer tudo sem aviso, sem assistência.”

Evangélico, teve na Bíblia a leitura inspiradora da sua adolescência e começo da juventude. “Sou cristão e me inspiro muito em Jesus, que falava com todos, de forma simples. Meu público vai de idosos a jovens que se identificam com a linguagem que uso.”

Passou a ser leitor voraz e apostar na comunicação como ferramenta de vida. Em uma de suas publicações no Instagram, relata o arremate de 200 livros em uma loja de “procedência duvidosa”. A compra foi motivada pela TV que deu defeito.

“Consigo me comunicar porque sou livre. Não tenho medo de cancelamento. Falo com educação, sem palavrões, mas de forma firme. Estou sempre aprendendo. Quando não sei algo, pesquiso. Sou curioso. Paro séries para entender uma palavra, revejo conteúdos várias vezes”, afirma.

Este ano foi a primeira vez que Ricky foi à avenida Paulista e ao Parque Ibirapuera. Os deslocamentos da favela onde mora até as regiões mais nobres da capital costumam durar até três horas.

“Se você der uma volta comigo aqui [na favela], por Deus, você chora. Você não volta a mesma pessoa. Você passa no meio dos ‘nóias’, passa em frente de biqueira, vê jovem buscando droga. Você vive num caos que afeta seu cérebro. Não dá nem tempo de você ficar pensando muito na vida. Acha que o cara vai sair daqui para ir na Paulista, curtir, caminhar? Ninguém quer.”

O codinome Mochileiro Ricky vem de outra iniciativa de vida do youtuber, que é viajar pelo país. Ele já foi para Rio, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, onde ficou vários meses como voluntário para auxiliar moradores diante dos estragos das enchentes que assolaram o estado no ano passado.

“A experiência de viver na favela me ajudou muito lá no Sul. O cheiro ruim da água, era normal, porque minha casa alagava. Aquelas coisas reviradas também não me afetavam. Eu entendia o sofrimento das pessoas porque eu já vi muita coisa sofrida. Meu psicológico não tem limites. Pude ajudar muita gente.”

Procurada, a Prefeitura de São Paulo disse ter realizado diversas ações na região da Subprefeitura de Cidade Tiradentes desde 2021. Em obras de infraestrutura e de equipamentos públicos a administração Ricardo Nunes (MDB) afirma que investiu “mais de R$ 171 milhões”, incluindo uma UPA, uma EMEI e uma unidade do Descomplica SP. Informa ainda estar canalizando 2.000 metros do córrego Rodeio.

Segundo a prefeitura, “a região também recebeu mais de R$ 105 milhões em obras de contenção e drenagem, pavimentação de vias, requalificação de calçadas, praças, passarelas de pedestres e instalação de ecopontos.”

Estão em andamento intervenções de contenção geotécnica de encostas, terraplenagem e paisagismo em áreas de risco, e a reforma de um conjunto habitacional.

Já a CDHU informou que cadastrou toda a favela para oferecer moradias, com 104 unidades já prontas e outras 98 em fase final de construção, dentro de um conjunto que terá 314 apartamentos. Além das casas, o plano é realizar projeto de desenvolvimento urbano, com melhorias no sistema viário.

O órgão disse ainda que houve reuniões prévias com a comunidade na CDHU e na própria favela, onde foi criado um escritório para tirar dúvida, situado no prédio da Subprefeitura Cidade Tiradentes.