SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Durante décadas, os neandertais, primos extintos dos seres humanos modernos, foram vistos como superpredadores que se alimentavam quase exclusivamente de carne de animais de grande porte, mas uma fonte relevante dos nutrientes em sua dieta pode ter sido muito mais inglória: larvas de insetos.

A ideia um tanto herética, que ajudaria a explicar a composição química incomum dos ossos de neandertais, baseia-se numa série de experimentos um tanto tétricos, envolvendo a decomposição de cadáveres humanos. Além disso, o novo estudo sobre o tema também incorporou o que se sabe sobre povos caçadores-coletores dos últimos séculos, os quais costumavam lidar com presas de grande porte em ambientes mais ou menos semelhantes aos habitados pelos humanos arcaicos.

As conclusões estão em artigo publicado nesta sexta-feira (25) na revista especializada Science Advances. A equipe liderada por Melanie Beasley, da Universidade Purdue (Indiana, nos Estados Unidos), usou a combinação de dados para tentar entender a suposta hipercarnivoria (ou seja, o altíssimo consumo de carne) dos neandertais.

Ocorre que as análises químicas dos esqueletos do Homo neanderthalensis, que desapareceu há cerca de 40 mil anos, sugeriam um nível de dependência da proteína animal na dieta que seria igual ou mesmo superior ao dos chamados predadores de topo terrestres de hoje, como leões e lobos.

Mas alguma coisa não parecia se encaixar nessa ideia, a começar pelo fato de que seres humanos e seus parentes próximos tinham e têm um organismo bem diferente dos carnívoros de grande porte. Para começo de conversa, a nossa espécie parece ter um limite de consumo de proteínas, que não pode ultrapassar 300 gramas por dia por mais do que cerca de duas semanas seguidas. (Aqui, 300 gramas se referem à proteína pura –pedaços de carne in natura também contêm gordura, é claro, em diferentes proporções.)

Ultrapassar esse limite significa sobrecarregar a atividade do fígado, órgão responsável por metabolizar os componentes das proteínas, o que faz com o que o sangue tenha uma sobrecarga tóxica de amônia. Resultado: fraqueza, letargia e, se a dieta não for normalizada, morte.

Os carnívoros “de verdade”, como os leões, conseguem metabolizar quatro vezes mais proteína em relação ao peso do próprio corpo do que nós. Então, o que estaria acontecendo com a composição química do corpo dos neandertais, e também com a de alguns humanos de anatomia moderna da Era do Gelo?

Segundo Beasley e seus dois colegas, a chave para entender a confusão pode vir do fato de que a classificação de superpredador dada aos neandertais vem da proporção, em seus esqueletos, do nitrogênio-15, um isótopo (variante) do elemento químico de mesmo nome.

O nitrogênio-15 é ligeiramente mais “pesado” que a forma muito mais comum do elemento, o nitrogênio-14, e tende a se acumular mais no organismo dos seres vivos conforme eles vão subindo os chamados níveis tróficos. Ou seja, a proporção de nitrogênio-15 é mais baixa em herbívoros, fica mais alta em carnívoros que só comem herbívoros, é ainda mais alta em carnívoros que comem outros carnívoros, e assim por diante.

Acontece, porém, que esse não é o único jeito de o nitrogênio-15 se acumular mais num organismo. A presença de animais como as larvas de insetos que se alimentam de carniça (as de moscas, por exemplo) bagunça essa conta. Isso acontece porque, ao longo do processo de apodrecimento, partes da carcaça de um animal que se decompõem primeiro tendem a conter mais nitrogênio-14, o isótopo “leve”. Assim, o nitrogênio-15 vai se concentrando na carcaça, e as larvas que continuarem a roer as carnes do cadáver ganharão uma proporção maior da variante do elemento químico em seu organismo. E quem as comer, é claro, tende a incorporar isso em seus próprios tecidos.

É aqui que vem a parte tétrica da pesquisa. Os pesquisadores testaram na prática esse efeito sobre as larvas usando cadáveres de pessoas que literalmente doaram seu corpo para a ciência, analisando a bioquímica da putrefação desses corpos. De fato, o processo de concentração de nitrogênio-15 aconteceu em níveis que batiam com o esperado, o que poderia gerar um falso efeito de “hipercarnivoria” em quem consumisse as larvas.

Mas como saber se isso acontecia mesmo com os neandertais? Larvas de moscas da Era do Gelo raramente se fossilizam, é claro, mas diversos relatos sobre caçadores-coletores de regiões temperadas e frias, datados dos últimos séculos, mostram que eles costumavam se alimentar sem grandes problemas desse tipo de larva.

Embora usassem uma série de técnicas para preservar a carne de caça durante períodos mais longos –salgando, defumando e secando as presas, por exemplo–, isso raramente bastava para afastar todos os insetos. Em vez de jogar fora o recurso alimentar, eles aproveitavam para comer também as larvas, que são ricas em gordura e, assim, ajudariam até a balancear o excesso perigoso de proteína. Os neandertais podem ter feito o mesmo, argumenta a equipe de pesquisadores.