SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Apesar de o ministro Alexandre Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), ter dito que Jair Bolsonaro (PL) não está proibido de dar entrevistas, na prática, as ambiguidades e termos genéricos de sua mais recente decisão mantêm um cenário bastante incerto dos limites do que o ex-presidente pode falar sem que isso seja lido como uma burla às restrições impostas pelo magistrado.
Especialistas consultados pela Folha de S.Paulo veem a nova manifestação de Moraes, expedida na quinta-feira (24), como pouco clara e consideram que ela ainda deixa lacunas importantes, que podem restringir de maneira excessiva a liberdade de manifestação de Bolsonaro.
Após ordem anterior que gerou uma série de dúvidas, uma das principais questões permanece: quando um post de terceiro com declarações do ex-presidente poderá representar uma violação da medida cautelar –o que justificaria sua prisão preventiva.
Na decisão desta quinta, Moraes afirma, por exemplo, que a burla estaria configurada quando houver divulgação de conteúdo ilícito em “patente coordenação”, além de citar expressões sem uma definição legal, como atuação por meio de “milícias digitais” e a “instrumentalização de entrevistas ou discursos públicos como ‘material pré fabricado'”.
Citando um post de Eduardo Bolsonaro (PL-SP), em que o deputado licenciado reverberou o episódio do início da semana em que o ex-presidente mostrava sua tornozeleira a jornalistas na Câmara dos Deputados e falava em “suprema humilhação”, Moraes afirmou ter havido descumprimento das cautelares por parte de Bolsonaro. Disse, porém, que não iria determinar a prisão por ter sido uma irregularidade isolada.
Bolsonaro está desde o dia 18 proibido de usar “redes sociais, diretamente ou por intermédio de terceiros”. Três dias depois dessa ordem -confirmada pela Primeira Turma do STF-, Moraes afirmou, em novo despacho, que “obviamente” tal restrição incluía transmissões, ou retransmissões de entrevistas “em qualquer das plataformas das redes sociais de terceiros”.
A partir da leitura geral da decisão, a interpretação apontada como a mais provável pela maioria dos especialistas é que quaisquer novas falas de Bolsonaro que sejam entendidas pela corte como reiteração das condutas investigadas no novo inquérito envolvendo a pressão contra corte junto ao governo dos Estados Unidos poderá ser entendida como uma burla à medida cautelar.
O advogado Vinícius Assumpção, que é doutor em direito pela UnB (Universidade de Brasília) e diretor do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), vê com preocupação as dúvidas sobre o despacho.
“Uma decisão que é lacônica em relação àquilo que proíbe é extremamente sensível, delicada, problemática”, diz. “Isso gera um prejuízo grave à pessoa investigada em qualquer processo.”
Apesar da falta de clareza, ele interpreta que o ex-presidente estaria sob risco de prisão a partir da publicação por terceiros de falas dele que venham a ser entendidas, por exemplo, como coação aos ministros ou que atentem contra a soberania e sem que se exija uma prova de coordenação explícita entre as pessoas.
No caso de falas antigas, apesar de a decisão não explicitar, ele avalia que Bolsonaro não seria responsabilizado, mas que não se pode descartar uma situação em que aqueles que estão replicando esses conteúdos se tornem alvo de investigação.
Para Paulo José Lara, diretor da Artigo 19, ONG que promove a liberdade de expressão, apesar de a nova decisão ter avançado em relação a anterior, segue havendo lacunas.
“Permanece nebuloso o que o ministro circunscreve quando menciona ‘milícias digitais’ e apoiadores políticos previamente coordenados para a divulgação das condutas ilícitas”, diz Lara, que vê também o uso da expressão “ilícita instrumentalização” como geradora de incertezas, dada a forma como as comunicações ocorrem no ambiente digital.
Já do ponto de vista do conteúdo, ele afirma que a dúvida principal diz respeito a que tipo de manifestação será considerada interferência na investigação.
Também a advogada e professora de direito penal da FGV Raquel Scalcon caracteriza os limites da decisão como pouco claros, deixando espaço para interpretação posterior do que a viola ou não.
“Acho que o que não está claro é se, na medida em que ele [Bolsonaro] se coloca como uma fonte de produção de conteúdo, que previsivelmente será postado por alguém, ele [também] vai estar violando a determinação”, diz ela.
Ela entende que um dos parâmetros que se extrai da decisão é que essa fala só seria considerada como uma burla à cautelar quando o conteúdo for considerado dentro do rol dos crimes sob investigação, como coação no processo.
Segundo a advogada criminalista e vice-presidente do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo), Marina Coelho Araújo, o ex-presidente não pode ser tolhido da liberdade de dizer que se sente injustiçado, que não teria cometido os crimes dos quais é acusado e até mesmo de que o tribunal estaria abusando de seu poder, tampouco poderia ser responsabilizado por posts de terceiros sem provas de que tenha atuado diretamente para a postagem.
Ela diz que a decisão ainda é dúbia. “Não está claro o que ele [Moraes] efetivamente considera ilícito, porque [Bolsonaro] pode dar entrevista, mas condiciona essa entrevista a questões que são super aleatórias”, diz ela.
Na avaliação de Rodrigo Chemim, professor de processo penal na Universidade Positivo, a nova decisão não esclarece com precisão o alcance da medida cautelar imposta.
“[A decisão] mantém uma ambiguidade interpretativa que, embora afirme inexistir vedação à concessão de entrevistas ou discursos, acaba por condicionar sua legitimidade a um juízo posterior sobre eventuais desdobramentos em redes sociais”, afirma ele. Para Chemin, o resultado prático desse cenário é um “efeito inibitório generalizado”.