SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A presença de mulheres no mercado de reparação automotiva cresceu 230% nos últimos seis anos. Em 2019, elas representavam 5%, e hoje representam 16,5%, segundo dados da Oficina Brasil. Com essa mudança, elas estão liderando suas próprias oficinas, trazendo diversidade e novas formas de fazer negócios no setor.
Foi o que aconteceu com Priscilla Kagohara, 36. Ela cresceu dentro de uma oficina comandada pelo pai, que trabalha no mercado automotivo há 40 anos. “Eu vivi dentro da graxa”, diz. Mas nunca foi incentivada a seguir na área -por ser mulher, o foco era o irmão.
Kagohara trabalhou por quase dez anos no setor financeiro de uma multinacional antes de decidir mudar de vida e voltar às raízes. Após mais sete anos, tornou-se efetivamente mecânica. “Eu sabia que queria ter uma oficina. Só que quando começamos a desmontar motor, descer câmbio, eu senti que ali estava nascendo para a mecânica”, afirma.
Com sua oficina, ela desenvolveu a marca “Oficina de Menina” como forma de atrair e acolher clientes mulheres. O espaço foi moldado para ser limpo, organizado, com banheiro feminino e didático, incluindo um setor com peças expostas em uma espécie de museu para explicar reparos de forma acessível. “Se a cliente não sabe o que é uma peça, eu mostro ali. Quando a mulher entende o que está acontecendo, ela se sente segura”, explica.
Seguindo essa linha de didática para aproximar mulheres da automobilística, Kagohara começou a criar conteúdos acessíveis e livres de jargões técnicos no Instagram, explicando a mecânica com analogias do cotidiano. Ela usa exemplos como a comparação entre uma panela de pressão e um reservatório de água.
A empreendedora também enfrentou machismo online, mas consolidou uma comunidade fiel de seguidoras, um grupo de mulheres que compartilham experiências e oportunidades.
No exercício da profissão, o machismo vinha tanto de funcionários quanto de clientes. Ela conta que já demitiu bons mecânicos por falta de respeito e por não acatarem suas ordens. “Já teve cliente que pediu para falar com o mecânico, e eu disse: ‘pode falar comigo mesmo’. Ele conferiu com outro mecânico se o que eu falei estava certo. E estava. Aí ele entendeu: eu sou a mecânica.”
Para além da diferença de gênero, existe também nas oficinas uma questão geracional. A pesquisa mostra que, entre os representantes com até 24 anos, 43% são mulheres. Na faixa até 29 anos, o índice cai para 37%. Entre os profissionais de 50 a 54 anos, apenas 2% são mulheres -participação que é praticamente nula entre quem tem 60 ou mais.
André Simões, diretor executivo da Oficina Brasil, explica que a média de tempo de profissão entre os mecânicos é de 21 anos, o que contribui para uma mudança de volume mais lenta.
Com o tempo, Kagohara afirma ter ganhado autoridade, experiência e postura firme. Hoje ela lidera uma equipe mista com respeito e leveza.
Parte dessa mudança acontece em sala de aula, na formação para reparação automotiva. É o que destaca Greicy Kelly, engenheira mecânica automobilística e professora do Senai-SP, sobre o crescimento expressivo no número de mulheres nesses cursos, especialmente no pós-pandemia, fruto de uma transformação cultural e estrutural do setor.
Kelly começou como estagiária de secretariado na Volkswagen, mas se encantou com a engenharia mecânica na ferramentaria. Cursou engenharia, fez mestrado e doutorado, trabalhou na Mercedes e em centros de pesquisa e depois passou a atuar como professora universitária. Sua presença em sala de aula virou referência e acolhimento para outras mulheres, mostrando que é possível ocupar esse espaço com competência. “Eu pensava: como queria ter tido uma professora mulher. E hoje eu sou essa pessoa para minhas alunas”, diz.
Kelly reconhece que ainda existe preconceito em oficinas, especialmente as mais antigas, e que as mulheres precisam provar constantemente sua competência, o que pode ser desgastante. “O que o sexo masculino é capaz de fazer na reparação veicular, o sexo feminino também é capaz de fazer da mesma forma”, afirma. Para isso, defende capacitação das equipes para entender que competência não tem gênero, além de mudanças no espaço físico –como vestiários e banheiros femininos.
Segundo Kelly, o aprimoramento do espaço físico vem das próprias mulheres, que apresentam mais detalhismo e organização. Simões, da Oficina Brasil, concorda e destaca uma melhoria no atendimento.
Kagohara acredita, porém, que a presença feminina crescerá mais no setor administrativo das oficinas do que na mecânica propriamente dita. Isso, para ela, representa uma barreira que ainda precisa ser desconstruída. Mas ressalta que é importante a mulher estar onde ela quiser, seja operando ferramentas ou administrando o negócio. “Nem toda mulher quer estar com a mão na graxa. Tem mulher que quer ser dona, administrar. E está tudo bem. Desde que os homens entendam que elas são as chefes e não as esposas do dono. A dona é ela.”
Tanto Simões quanto Kelly acreditam que o setor da mecânica está passando por mudanças que envolvem modernização, com trabalhos cada vez mais tecnológicos e menos braçais, melhor atendimento e uma mentalidade aberta para a diversidade. “A mulher é uma variável que está acelerando a mudança e profissionalização do setor”, conclui Simões.