SÃO CARLOS, SC (FOLHAPRESS) – Estruturas com aspecto quase carnavalesco, que cobriam parte do dorso de um réptil que viveu há 247 milhões de anos, tinham semelhanças com as penas das aves atuais e, ao mesmo tempo, uma estrutura básica bem diferente é quase como se fossem penas que surgiram num universo paralelo ao nosso.
Parte do espanto, se descontarmos a anatomia bizarra do bicho, vem do fato de que as “pseudopenas” identificadas nas costas do réptil Mirasaura grauvogeli são uns 80 milhões de anos mais antigas que as primeiras aves. Aliás, a espécie precede até os primeiros dinossauros, grupo ao qual, na verdade, pertencem as aves atuais e extintas.
Mas o Mirasaura claramente não é nem uma coisa nem outra, conforme mostra a análise filogenética (de parentesco evolutivo) conduzida no estudo que descreve pela primeira vez a espécie fóssil, publicado nesta quarta-feira (23) na revista científica Nature.
Segundo a equipe liderada por Stephan Spiekman, do Museu Estadual de História Natural de Stuttgart, na Alemanha, o bicho de uns 15 cm de comprimento é um drepanosauromorfo. Isso significa que ele pertence a uma linhagem que se separou daquela que deu origem a todos os demais répteis (e aves) viventes.
Ou seja, as estruturas com leve ar de cauda de pavão ”apêndices tegumentares”, como os cientistas as chamam no artigo da Nature surgiram de forma completamente independente do processo que gerou as penas verdadeiras das aves. É provável, no entanto, que tivessem funções semelhantes a certas plumas de hoje. Nada a ver com o voo nem com o isolamento térmico do corpo: poderiam ser ferramentas para atrair a atenção de parceiros, por exemplo, ou para intimidar predadores.
Um dos aspectos fascinantes da nova descoberta, destaca a paleontóloga Taissa Rodrigues, da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), é que ela ajuda a elucidar os aspectos mais polêmicos de outro fóssil, o Longisquama, descoberto nos anos 1970.
“Desde então, ele era considerado bastante misterioso, com muitas discussões sobre o que eram as estruturas, se elas eram pareadas ou não, sua composição e até mesmo se o animal poderia abaixá-las e levantá-las”, conta ela. “As dezenas de fósseis do Mirasaura finalmente responderam a essas perguntas.”
Esse ponto é importante: não se trata de um bicho isolado, mas sim de 82 fósseis, o que aumenta a confiabilidade das interpretações do novo. Dois deles têm crânio e esqueleto preservados, enquanto a maioria dos demais são fragmentos das “cristas”. O formato da cabeça, dos dentes e do resto do esqueleto indicam que se tratava de um comedor de insetos com hábitos arbóreos, a exemplo de outros drepanosauromorfos.
Isso, claro, é o que os cientistas conseguem inferir olhando a estrutura geral dos ossos e da dentição do bicho. Com a ajuda de uma série de técnicas de ponta, em especial a microscopia eletrônica de varredura, os pesquisadores conseguiram analisar os detalhes mais finos do “penacho”, confirmando que, como seria de esperar, as estruturas não são plumas, apesar de algumas semelhanças intrigantes.
A principal diferença em relação às penas reais tem a ver com a ausência das estruturas ramificadas que se projetam a partir do centro das penas, chamadas barbas e bárbulas (a diferença é, entre outras coisas, de tamanho as bárbulas são pequenas ramificações das barbas). As bárbulas, entrelaçando-se, formam a superfície plana de boa parte das penas das aves.
Nada disso está presenta na crista do Mirassaura. Por outro lado, a análise microscópica mostrou a presença de minúsculas bolsas de pigmento, os melanossomos, que estão presentes, por exemplo, em estruturas como as penas das aves e os pelos dos mamíferos. E, nesse caso, a distribuição de tipos de melanossomos no “penacho” é similar à das aves, com muitas formas diferentes deles, enquanto a variedade de formas costuma ser reduzida no caso dos pelos dos mamíferos, por exemplo.
Trata-se, em resumo, de um exemplo de evolução convergente, com grupos muito distantes desenvolvendo detalhes anatômicos similares por meio de estruturas diferentes, diz Rodrigues. Ela cita ainda as picnofibras, estruturas presentes nos pterossauros (répteis voadores) que lembram superficialmente pelos.
“O que penas, picnofibras e essas estruturas ainda sem nome próprio do Mirasaura demonstram é que a receita genética para o surgimento de estruturas derivadas da pele é muito antiga, e que em alguns grupos esses elementos genéticos vieram, de fato, a criar estruturas novas”, conclui ela.