SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando “Iracema – Uma Transa Amazônica” foi exibido pela primeira vez, a estrada em que o longa foi rodado destruía comunidades indígenas e devastava a natureza ao seu redor.

Cinco décadas depois, agora em 4K, o filme volta aos cinemas nesta quinta (24). Apesar do fim da ditadura que tornou a Transamazônica em símbolo de falso progresso, Jorge Bodanzky defende que nada mudou.

“As pessoas que hoje são da direita e impõem seu nacionalismo não estão inventando nada. A denúncia atual que ‘Iracema’ faz é de estarmos novamente, em todos os sentidos, às vésperas do que levou ao golpe de 1964. O filme é bom para as gerações que não viveram aquilo, e acham que o agora é uma grande novidade”, afirma o diretor, que conduziu a produção junto do cineasta baiano Orlando Senna.

Foi em 1968, durante a carreira como fotojornalista, que uma reportagem no interior do Pará apresentou a base de seu projeto de estreia. Na beira da rodovia BR-010, Bodanzky percebeu que a noite tornava um posto de gasolina em parada para prostituição. Motoristas revezavam menores de idade entre caminhões e ele descobria um ponto de partida.

A militância de Paulo César Pereio chamou logo a atenção, e o ator se juntou a “Iracema” como o caminhoneiro Tião Brasil Grande. Do seu lado, a estreante Edna de Cássia, menina de 15 anos que foi descoberta numa tarde qualquer, ao matar aula em um Sesc. O teste inicial aconteceu num mercado, onde a jovem trombou com a mãe e a confusão conquistou Bodanzky e Senna. Na ocasião, ela ainda não sabia para o que estava sendo cotada.

“Ela nunca tinha ido ao cinema e nem passava por sua cabeça se tornar atriz ou qualquer coisa do tipo. Mas Edna logo sacou a proposta do filme. Conseguimos a autorização da família e ela ficou sob os cuidados de Conceição Senna [também escalada]. Já é uma vovó de 65 anos, mas continua com a mesma cabeça, a mesma voz e a mesma risada”, diz Bodanzky.

Ao se tornar uma das primeiras indígenas a estrelar um longa, de Cássia sofreu preconceitos e recebeu propostas para papéis estigmatizados. Sua vontade de seguir na atuação era mínima, e hoje ela trabalha como professora. É um trajeto distante da personagem-título, que após se perder da família no Círio de Nazaré -uma das principais festas católicas do país-, decide se prostituir para sobreviver.

A partir dos contrastes da dupla de protagonistas -representante de um Brasil onde aliados do governo consumiam os mais fracos-, a direção retrata a atmosfera da época. Filmado às escondidas e numa zona de segurança nacional, a produção enfrentou a censura e se tornou pioneira ao registrar as queimadas que tomavam território.

“As imagens eram inéditas para o público e para nós mesmos. Eu sabia da destruição, mas não tinha ideia da dimensão que era o fogaréu. É engraçado que até hoje me pedem essa filmagem. ‘Gente, já se passaram 50 anos, [a Amazônia] continua queimando do mesmo jeito”, diz Bodanzky.

Câmeras leves e de fácil manipulação enganavam agentes do exército, e informações ocultadas da grande mídia vinham à tona. Comum à assinatura do diretor, a interação do elenco com pessoas reais -na maioria marginalizadas pela obra pública-, determinou um hibridismo entre a ficção e o documentário.

Concebido para um programa experimental da televisão alemã, a obra foi lançada em 1974, caiu nas graças do francês Jean Rouch -expoente do chamado “cinema verdade”, que posiciona a sétima arte como reflexo da realidade- e foi indicada para importantes festivais internacionais. Frente a um circuito ainda muito segmentado entre realizações documentais e ficcionais, Bodanzky coloca a dupla natureza de “Iracema” como essencial para a sua propagação.

Em terras brasileiras, por outro lado, o longa só seria autorizado em 1980, quando foi amplamente premiado no Festival de Brasília. Os troféus, entretanto, sucediam o movimento cineclubista.

“Conseguimos uma cópia que foi enviada ao Brasil e circulou por diversos cineclubes durante os anos em que “Iracema” esteve censurado no país. A censura não tinha controle sobre esse movimento. Quando o filme finalmente chegou aos cinemas, o público que mais nos interessava atingir já tinha tido algum acesso a ele”, afirma o cineasta.

Diante da comoção que “Iracema” provocou em suas origens, de Cássia também vê a atualidade do projeto. “O filme é um alerta para as mudanças climáticas. Pensei que minha missão já tinha sido cumprida. Mas me parece que só agora ela está sendo realizada”, diz ela.

“Acredito que só agora ‘Iracema’ está realmente deixando o seu legado.”

IRACEMA – UMA TRANSA AMAZÔNICA

Quando Estreia nesta qui. (24) nos cinemas

Classificação 16 anos

Elenco Edna de Cássia e Paulo César Pereio

Produção Brasil, Alemanha, 1974

Direção Jorge Bodanzky e Orlando Senna