Da Redação

O Brasil pode estar dando os primeiros passos para deixar de depender de sistemas estrangeiros de geolocalização, como o GPS dos Estados Unidos. Um grupo técnico foi criado por órgãos do governo, instituições de pesquisa, Força Aérea e representantes da indústria aeroespacial para avaliar a possibilidade de o país desenvolver sua própria rede de satélites de posicionamento, navegação e tempo.

A iniciativa foi formalizada por meio de uma resolução publicada pelo Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro. O grupo tem até o início de 2026 para apresentar um relatório detalhado com diagnósticos, recomendações e cenários possíveis. A missão: entender se é viável — técnica e economicamente — construir um sistema nacional de geolocalização por satélite, seja ele de cobertura regional (apenas o território brasileiro) ou global.

Segundo Rodrigo Leonardi, diretor da Agência Espacial Brasileira (AEB), o projeto ainda está em fase inicial, e o foco agora é identificar gargalos, riscos, vantagens e desvantagens. “É uma empreitada extremamente complexa, que exigiria muitos recursos e avanços tecnológicos. Mas é um debate necessário, especialmente considerando a importância estratégica desses sistemas.”

Hoje, o mundo depende de constelações como o GPS (EUA), o Galileo (União Europeia), o Glonass (Rússia) e o BeiDou (China). Todos esses sistemas formam o chamado GNSS — Conjunto Global de Navegação por Satélite — usado em celulares, aviões, navios, sistemas militares e até na agricultura de precisão. O Brasil, no entanto, não tem um sistema próprio e usa, como a maioria dos países, os sinais de satélites estrangeiros.

Fantasmas geopolíticos reacendem debate

A criação do grupo aconteceu em um momento de tensões comerciais. Pouco depois de o governo dos Estados Unidos anunciar tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, começaram a circular rumores nas redes sociais sobre uma possível suspensão do sinal do GPS ao Brasil. Embora essa hipótese seja considerada improvável por especialistas, o episódio reacendeu discussões sobre soberania tecnológica e vulnerabilidade.

Leonardi foi enfático ao dizer que o grupo não foi criado em reação a essas especulações. “O tema já vinha sendo discutido há meses. O Brasil não recebeu nenhuma ameaça formal dos EUA. E mesmo que isso acontecesse, há alternativas ao GPS. O mundo não depende de um único sistema.”

Celulares já usam múltiplos sinais

Segundo o professor Geovany Araújo Borges, da Universidade de Brasília (UnB), hoje a maior parte dos aparelhos modernos já é “multiconstelação” — ou seja, consegue captar sinais de diversos sistemas GNSS ao mesmo tempo. “Mesmo que o GPS fosse desativado para o Brasil, celulares e equipamentos continuariam funcionando, desde que o software suporte outros sinais.”

Para ele, a discussão sobre o Brasil criar seu próprio sistema vai além da questão geopolítica. “É uma pauta de desenvolvimento. A indústria aeroespacial movimenta uma cadeia que inclui defesa, medicina, telecomunicações e agricultura. Ter um sistema próprio fortalece a independência tecnológica do país.”

Desafios: custo, tempo e tecnologia

Apesar do entusiasmo com a ideia, Borges alerta que o desafio é gigantesco. “Não nos falta gente capacitada, mas sim financiamento contínuo. E não dá para fazer um projeto desses de forma apressada. É preciso tempo, estabilidade e política de Estado.”

Outro obstáculo: muitos dos componentes usados em satélites de navegação são considerados estratégicos e não são facilmente exportáveis. Isso significa que o Brasil teria que, paralelamente, desenvolver sua própria indústria de microeletrônica.

Ainda assim, o professor considera positiva a criação do grupo. “Pode ser o começo de uma trajetória que nos leve, no futuro, à soberania nesse campo. O importante é que não fique apenas no papel.”