SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O dramaturgo e escritor argentino Tulio Carella se consagrou no “boom” econômico e cultural que seu país viveu entre 1910 e 1940. Sua carreira de sucesso teve lugar, principalmente, no palco do Teatro Nacional de Comédia, ainda hoje de pé em Buenos Aires, reformado e com o nome de Teatro Cervantes.

Vivenciou a Argentina peronista e teve de escapar dela devido a pressões por seu estilo ousado, sua bissexualidade vivida abertamente e por ser considerado um transgressor depois do golpe militar que depôs Juan Domingo Perón em 1955.

Em 1960, Carella mudou-se para um lugar que, naquela época, parecia outro planeta para um argentino nascido no interior da província de Buenos Aires: Recife, a capital de Pernambuco. Ali chegou a convite dos dramaturgos Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna.

Formado na tradição clássica dos escritores do chamado Século de Ouro espanhol —prolífica era que se estende do século 15 ao 17, cujos expoentes literários foram Luís de Góngora, Lope de Vega, Calderón de la Barca e Miguel de Cervantes—, logo Carella passou a se interessar pela vida do submundo das grandes cidades, pela marginalidade e pela homossexualidade, então vista com enorme preconceito.

Ao chegar ao Brasil, mergulhou no cotidiano dos negros —população menos numerosa em Buenos Aires, mas muito presente no Recife. O diário de sua vida de quase dois anos no Brasil, de 1960 a 1961, foi publicado em 1968 com o título de “Orgia”. Com o “cancelamento” que sua figura sofreu após sua morte, em 1979, em plena ditadura militar na Argentina, o livro logo saiu de catálogo.

Ficou praticamente esquecido até que Alvaro Machado, jornalista e doutor em artes cênicas pela Universidade de São Paulo, publicou a reedição de “Orgia, os Diários do Recife” em 2011.

“O livro não foi bem compreendido”, diz Machado à Folha. “O mercado o rotulou como literatura pornográfica, mas a obra vai muito além disso —ela é um retrato daquele tempo conturbado, tanto na Argentina como no Brasil, e traz as impressões e relatos de um homem que queria conhecer os personagens das entranhas dessas sociedades.”

O mergulho agora resulta numa nova publicação de Machado: “Orgia e Compadrio – Tulio Carella, Drama e Revolução na América Latina”, recém-lançado pela Cosac.

Em seus relatos, Carella descreve seus encontros sexuais com pessoas anônimas, ao mesmo tempo em que dá aulas de teatro na Escola de Belas Artes do Recife e frequenta a roda de intelectuais nordestinos da época.

O estudo reconstrói a trajetória literária e afetiva de Carella, inserindo-o numa genealogia sul-americana de autores que fizeram do exílio e da dissidência uma forma de expressão e de resistência. Além de contextualizar o autor, “Orgia e Compadrio” refaz seu percurso intelectual e examina toda sua produção literária.

A palavra “compadrio” faz referência a esse universo de códigos masculinos de honra e desafio típicos dos subúrbios de Buenos Aires, imortalizados por autores como Jorge Luis Borges, e que Carella, à sua maneira, ressignificou ao aplicar à sua própria vida de marginalidade afetiva e social.

Machado conta que, ao chegar ao Brasil, Carella mergulhou num Recife em ebulição, com as Ligas Camponesas ocupando as ruas e tensão social visível. Ele descreve, por exemplo, suas impressões ao ver camponeses com facões em passeatas.

A observação política, no entanto, convivia com uma experiência sensorial intensa: ele escrevia para o jornal Diário de Pernambuco, trocava cartas com Hermilo Borba Filho e registrava, com lirismo e crueza, as experiências de um corpo estrangeiro e cheio de desejo em meio à paisagem tropical.

Carella destoava da população local, e isso o deixava excitado. Em “Orgia”, descreve como era seguido nas ruas por homens e mulheres e que recebia muito bem esse tipo de atenção. “Carella era muito alto e branco —chamava atenção numa Recife que era ainda mais negra do que é hoje”, observa Machado.

O erotismo que perpassa o texto é muitas vezes desconcertante. As descrições de corpos negros, na época do lançamento do livro, geraram incômodo, e o próprio Carella se pergunta nas páginas do diário se estaria fetichizando o outro.

Em certos trechos, como na cena de um mictório público, o olhar poético colide com a brutalidade da exposição. Carella descreve um pai negro e seu filho —o garoto tinha a altura do membro sexual do pai. Para Machado, “as coisas mais bonitas do livro são as citações dos relatos de Carella —das sensações que tinha nas descrições eróticas”. “Ele escrevia tudo com muito lirismo.”

Recife tinha na época um prefeito socialista, Miguel Arraes, que deu grande apoio às artes. Era, porém, a antessala da ditadura brasileira. Na mira dos militares, Carella foi preso e identificado como um “agente cubano”, vinculado ao “tráfico de armas” para os “comunistas locais”.

Ficou preso por oito dias, foi levado à ilha de Fernando de Noronha e interrogado sob tortura. Após ser solto e demitido da universidade, não lhe restava outra alternativa senão voltar a Buenos Aires.

Hoje, Tulio Carella é praticamente invisível em sua terra natal. “Ele é o único autor argentino só publicado no Brasil”, afirma Machado. “Na Argentina, você não encontra seus livros. O único jornal que ainda o menciona é o Página/12 [de linha editorial historicamente progressista].”

“Orgia e Compadrio” busca corrigir esse apagamento não apenas por meio da análise acadêmica, mas também pelo resgate de documentos primários, como as centenas de cartas que Carella enviou a Borba Filho.

Ao recuperar a figura de Carella, Machado não apenas resgata um autor, mas também propõe uma reflexão mais ampla sobre o que se apaga da história literária e por quê. O silêncio em torno de “Orgia”, seja por censura, preconceito ou desprezo intelectual, revela os limites de uma crítica que sempre privilegiou o cânone e desautorizou corpos dissidentes.

“Orgia e Compadrio” faz o caminho inverso: ilumina o que foi lançado às sombras, devolvendo a Carella seu lugar não como exceção escandalosa, mas testemunha aguda de seu tempo.

ORGIA E COMPADRIO – TULIO CARELLA, DRAMA E REVOLUÇÃO NA AMÉRICA LATINA

– Preço R$ 132 (368 págs.)

– Autoria Alvaro Machado

– Editora Cosac