SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Das janelas do 7º andar de um prédio comercial no centro da favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, é possível ver as antenas de rádio e TV da avenida Paulista, na região central da cidade. Ali, nos dois pavimentos mais altos do edifício, jovens empreendedores estão montando uma cooperativa de empresas para dar cursos de empreendedorismo, fotografia e até conceitos de inteligência artificial.
O carpete de grama sintética, as portas de vidro, a prateleira de livros sobre negócios, o tampo de uma mesa de pingue-pongue encostado na parede, os computadores Apple, tudo no ambiente indica um alinhamento com tendências de estética das startups. Se o visitante não olhar a paisagem com morros ao redor repletos de barracos de alvenaria, pode até esquecer que não está num bairro rico ou de classe média.
Um aporte financeiro privado, uma emenda parlamentar, uma campanha de arrecadação online, doações e reservas de dinheiro dos fundadores financiaram a reforma para instalar ali a sede da Legado Paraisópolis, iniciativa que reúne cinco empresas, conta a empreendedora Tatiane Cruz, 37.
A rua Melchior Giola, onde fica o prédio, é um corredor completamente ocupado por comércio e serviços no coração da favela. Os revestimento nas fachadas das lojas são novos, os prédios têm ladrilho e pintura, o movimento de clientes é intenso.
“A gente não foi educado para falar sobre oportunidade, para falar sobre dinheiro. A gente foi educado para sobreviver”, diz Tatiane, que cresceu na favela do Pullman, a poucos quilômetros dali. “Meu maior concorrente é a realidade. Todo mundo aqui tem um instinto de sobrevivência.”
A atenção sobre a maior favela de São Paulo -e terceira do Brasil- cresceu após os tumultos que deixaram carros depredados e barricadas incendiadas no dia 10 de julho. O protesto, com atos de vandalismo, foi uma resposta ao assassinato de Igor de Oliveira Moraes Santos, 24, morto por policiais militares quando estava rendido, com as mãos na cabeça.
Os confrontos que se seguiram deixaram ainda um suspeito morto e um sargento ferido. Dois PMs que atiraram em Igor foram presos em flagrante. A polícia afirma que havia indícios claros que ele estava vendendo drogas junto a outros três suspeitos, que fugiram ao ver os agentes. A ação foi classificada pela própria corporação como ilegal.
Num local marcado pelo estigma da periferia, a prosperidade financeira de alguns e a violência policial andam juntas, segundo moradores. É o que diz a líder comunitária Renata Alves, 43, que conta ter visto o próprio filho ser alvo de chutes por PMs.
“O policial estava indignado com a moto, estava indignado com o tênis, estava indignado com o celular. Ele disse: ‘não é possível que vocês tenham isso’. E aí meu filho falava ‘eu trabalho com meu pai, na pizzaria tal’. [E a resposta foi:] ‘Não, com certeza lava dinheiro para alguém'”, conta Renata, que conclui: “É inadmissível, para eles, o periférico ter algo [que conquistou] do suor”.
Quase todos os moradores que conversaram com a reportagem têm histórias de violência policial que protagonizaram ou que tiveram parentes próximos como alvo. Renata, por exemplo, teve um tio morto pela polícia quando voltava do trabalho na década de 1980. A doméstica aposentada Márcia Barros, 56, resgatou o filho de 15 anos de um barraco onde militares deram socos em seu estômago e o ameaçaram por ele não saber dar informações.
O pastor Geovan Oliveira, 36, conta que resolveu entrar para a União de Moradores e debater violência policial depois que ele e a família ficaram sob a mira de um fuzil de um PM quando voltavam da igreja. Ele diz que uma de suas tias, que também mora em Paraisópolis, já acordou de madrugada com uma arma apontada para seu rosto e com o policial perguntando sobre todos que moravam na casa.
Vários moradores contaram que se sentem mais seguros na favela quando a polícia não está por perto. Questionada sobre isso, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou que “reforça o compromisso irrestrito com a legalidade, a transparência e o respeito aos direitos fundamentais da população”.
De acordo com a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos), as operações na comunidade têm como objetivo garantir a segurança dos moradores, preservar vidas e coibir ações criminosas, “sempre observando os protocolos operacionais e as diretrizes institucionais estabelecidas”. “Toda e qualquer denúncia envolvendo possíveis excessos ou abusos por parte de agentes da Polícia Militar é prontamente investigada e punida, assim como ocorreu no caso do último dia 10”, disse a secretaria, em nota, ressaltando que a Corregedoria da PM está à disposição para receber denúncias.
Os moradores reconhecem a presença do crime organizado no território, mas afirmam que os traficantes não atrapalham os negócios regulares dos moradores. Dizem também que, ao menos em Paraisópolis, os criminosos não obrigam a população a contratar serviços ilegais de internet (chamado de gatonet) ou comprar botijões de gás de fornecedores indicados pela facção.
Há um nítido controle da entrada de forasteiros na comunidade. A presença do PCC (Primeiro Comando da Capital) na favela é conhecida e objeto de inquéritos policiais.
No ano passado, por exemplo, moradores da região afirmaram à reportagem que integrantes da facção expulsaram trabalhadores de uma empresa responsável pela obra de canalização do córrego Antonico, orçada em mais de R$ 100 milhões.
Em 2018, integrantes da facção teriam sequestrado e matado a soldado Juliane dos Santos Duarte, 27, segundo denúncia do Ministério Público estadual. Ela teria sido feita refém quando tomava cerveja com amigas num bar na favela, segundo a acusação.
Esse assassinato, segundo moradores, teria motivado ações da PM ao longo de um ano e meio que se transformaram em violência indiscriminada. A líder comunitária relaciona diretamente essa morte com uma sequência de casos de violência policial, resultando ao final na morte de nove jovens durante um baile funk em 1º de dezembro de 2019.
Hoje os pancadões foram praticamente banidos de Paraisópolis.
“Não somos contra a polícia fazer seu trabalho”, afirma o líder comunitário Claudio Fernandes da Costa, da União de Moradores. “Somos totalmente contra essa truculência indiscriminada que estamos vivendo.”
Ele diz que, após a morte de Igor e os atos de depredação, a favela ficou praticamente sitiada com dezenas de viaturas da PM no entorno.
A transformação de Paraisópolis nos últimos 50 anos -de uma aglomeração de barracos para um complexo que começa a se verticalizar- passa pela história de famílias como a do líder comunitário Claudio Costa. Seus avós chegaram ali na década de 1960, quando a região ainda tinha as características de uma intersecção de fazendas.
Essa expansão da favela foi um espelho do crescimento urbano no entorno. Os primeiros moradores eram operários que trabalharam em grandes obras, como as construções do Hospital Israelita Albert Einstein e de colégios privados do bairro do Morumbi.
Como é comum ao crescimento de muitas comunidades, os pioneiros chamavam familiares e amigos de suas cidades de origem quando ficavam sabendo de novas oportunidades de emprego. Em certo momento, as primeiras ruas eram identificadas pelo estado de origem dos moradores: rua dos baianos, pernambucanos, paraibanos.
Houve uma mudança na relação com a polícia, segundo alguns moradores, a partir de projetos de urbanização no início da década de 2000. Com ruas mais largas e asfaltadas cortando a favela, as viaturas da PM passaram a entrar com mais facilidade.
As mercadorias também, o que ajuda a explicar a aceleração do comércio, a geração de mais empregos dentro da favela e a atração de mais moradores. Parte deles torna-se cliente do tráfico de drogas. Outros viram soldados do crime organizado.
As ruas de Paraisópolis estão sempre cheias de gente das primeiras horas da manhã ao anoitecer. Pessoas a pé, motocicletas e bicicletas dominam as vias. Os moradores se cumprimentam nas ruas a todo tempo, famílias passeiam de mãos dadas, há conversas entre conhecidos a cada esquina.
Entre os 58 mil habitantes, poucos testemunharam a transformação da comunidade como a agente de saúde Maria de Fátima Felipe de Lima, 69, a Fatinha. Ela chegou ali na década de 1970, quando a população total da favela, nas suas contas, era de 25 pessoas.
Ela foi a primeira agente de saúde da comunidade e participou do mutirão para construir o primeiro posto de saúde, na década de 1980. Fatinha conta que cavou os buracos na terra onde foram fixadas as fundações do prédio.
“Paraisópolis é o coração do Morumbi”, diz. “Tudo que você faz aqui flui, prospera.”
Ela já não admite se referir a Paraisópolis como um lugar carente. “Não é mais.”