SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No segundo semestre de 1974, o compositor Tibério Gaspar recebeu Tim Maia na sua casa, no Recreio dos Bandeirantes, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, e pediu que ele o esperasse no quarto enquanto tomava banho. O cantor estava sob efeito de mescalina, uma substância alucinógena encontrada nos cactos, quando avistou o livro “Universo em Desencanto”, que Gaspar pegou com o pai, em cima da mesa.
“Meu pai era um matemático fantástico, falava várias línguas, tinha contato com grandes cientistas ao redor do mundo”, disse Gaspar, morto há cerca de sete anos, ao livro da série “33 1/3 Brazil” dedicado à fase “Racional” de Tim Maia. “Ele foi até a casa do Manoel Jacintho Coelho e, na volta, disse que ‘o cara tinha toda a ideia da filosofia quântica na cabeça, ele sabia por intuição’.”
O livro teve impacto significativo na vida de Tim Maia. O rei da soul music brasileira parou de beber, fumar, usar drogas e comer carne vermelha, doou diversos bens à seita –liderada por Seu Manoel em Belford Roxo, no Rio–, passou a usar somente roupas brancas e a crer que os seres humanos vieram à Terra de outros planetas. Mais importante do que isso, fez alguns de seus discos mais cultuados –“Racional”, lançado há 50 anos.
De 1974 a 1976, quando Tim Maia viveu sua “fase Racional”, os álbuns –foram dois lançados originalmente, além de um terceiro finalizado de maneira póstuma– eram praticamente desconhecidos do grande público. O próprio cantor, após se desiludir com a seita, fez questão de se desfazer de todos os vestígios desse período, incluindo os discos.
Mas com o passar dos anos o primeiro volume da trilogia “Racional” foi se tornando um clássico improvável, redescoberto por novas gerações no Brasil e aficionados por música fora do país. Inspirou o nome do maior grupo de rap do país, os Racionais MCs, virou item raro na mão de DJs e colecionadores de vinil e passou a circular informalmente entre fãs na internet até chegar ao streaming há seis anos.
Há diversos mitos que envolvem esse período da vida de Tim Maia. Um deles é que o artista teria se interessado pela seita Racional porque vivia um período de excessos e estava em busca de salvação. Segundo Paulinho Guitarra, guitarrista, amigo e braço direito do cantor em suas bandas nos anos 1970, eles se conectaram à seita por causa dos extraterrestres.
“Tim era um cara cético, e a gente era ligado em ufologia. Adorava esses assuntos de Ovni”, conta. “Ele chegou assim ‘Paulinho, o Tibério trouxe um livro que tu vai gostar’. Eu vi e de noite fomos lá. Ficamos conversando com Manoel, saímos quase 6h da manhã carregando um monte de livros, camisetas, adesivos. Tim já ficou amarradão –e eu, muito chegado a ele, fiquei também. A gente ainda não sabia muita coisa. Soubemos meio pelo alto.”
Manoel Jacintho Coelho era um médium que havia atuado na umbanda e criou o culto baseado na ideia de que os humanos não são deste planeta. Segundo o jornalista americano Allen Thayer no livro da série “33 1/3 Brazil”, para voltar ao seu planeta de origem o fiel deveria passar pelo processo de “imunização racional”. Isso consistia basicamente em ler e reler as centenas de livros da série “Universo em Desencanto”.
Desde maio de 1974, Tim Maia vinha gravando novas canções com um time de peso de músicos, entre eles Cassiano, Beto Cajueiro, Robson Jorge, Serginho Trombone, Oberdan Magalhães, Luiz Carlos Fuina, Robério Rafael, Paulinho Braga, José Roberto Bertrami, Don Chacal e Don Pi, além de duas pessoas com o mesmo apelido –Paulinho Trompete. Um desses trompetistas, Paulo Roberto Martins, ou Paulinho “Ganso”, como era chamado, se lembra do choque ao ver o cantor diferente.
“De repente, ele fez a barba, que ele pouco fazia, ficou limpinho, tomava banho, usava roupa branquinha, parou de fumar, de beber”, ele diz. “De vez em quando, ele falava algumas coisas, mas não ficava pregando como fazem os evangélicos. Tinha um bom coração. Era um crianção. Uma criança adulta.”
Paulinho conta que a maior parte das privações que Tim Maia viveu não eram exigências do culto. “O bom é que não precisava parar de beber”, diz. “Lá mesmo na sede a gente tomava uma cachacinha, uísque, cerveja. O problema é que eles achavam que cannabis era droga. Cigarro podia, todo mundo fumava, era o maior cheiro. Podia tudo –até comer carne vermelha.”
Todos, contudo, tinham que usar branco e ler o livro. Paulo Roberto Martins, o Paulinho Trompete, diz que só usava “a roupinha branca porque senão Tim tirava da banda”. “A gente comprava o livro, botava debaixo do braço, mas era só para mostrar a ele. Saía de lá e tirava o branco, botava o livro de lado. Quando ia tocar, botava o branco, pegava o livro.”
Uma parte da trupe aderiu à cultura Racional. “Os mais malucos acharam o maior barato”, diz Paulinho. “Serginho Trombone, Robério, Beto, eu, todo mundo era maluco. Veio aquela ideia do espaço, que os seres vieram da planície do universo, aí todo mundo ficou animado. Já Robson Jorge, Oberdan Magalhães e Carlos Dafé não foram ao fundo. Essa galera era mais reservada.”
É também um mito que os músicos gravaram “Racional” sóbrios e seguindo os preceitos da filosofia de Seu Manoel. Na verdade, toda a parte instrumental dos álbuns dessa fase foi gravada meses antes de Tim Maia aderir à seita, com outras letras. Depois, já sob a influência de “Universo em Desencanto”, o cantor refez todas as vozes, mudando também todos os versos para fazer referência à nova filosofia.
As sessões eram regadas a maconha e outras drogas alucinógenas, como era comum para parte desses músicos. Várias composições eram parcerias de Tim Maia com gente como Cassiano, Fábio Stella e Robson Jorge. As letras originais foram todas apagadas, mas Paulinho se lembra de alguns trechos. Ele conta que “Quer Queira, Quer Não Queira”, que abre “Racional (Vol. 2)”, era uma letra de Stella que misturava línguas e dizia no refrão algo como “yo naci someone de Puerto Rico e meu destino é Nueva York”.
“Imunização Racional (Que Beleza)” foi a única canção dessa época que teve a letra original quase inteira mantida. Quase porque o verso “ver tudo bem mais claro no escuro” já era inspirado pelos preceitos da cultura Racional. Mas a falta de referências explícitas ao culto foi também uma forma de despistar a gravadora.
A RCA Victor havia contratado Tim Maia para lançar um disco convencional, e ele mostrava essa canção como exemplo do que estaria gravando. Assim, poderia continuar usando os estúdios caros sem ter que pagar pelo aluguel dos espaços. Grande parte dos instrumentais foi gravado com os músicos se divertindo com equipamentos recém-comprados da empresa.
Quando viram o resultado final, com as letras repletas de referências à seita, os executivos dispensaram o cantor, que pagou pelas fitas e fundou seu selo próprio, o Seroma Edições Musicais, para lançar os discos “Racional”. Também é um mito que ele teria roubado esse material de madrugada, vestido de branco e acompanhado dos amigos.
É verdade que a voz de Tim Maia nesta fase soam límpidas como nunca, resultado do estilo de vida regrado, da alimentação saudável e principalmente do fato de o cantor ter abandonado o cigarro. Citado hoje como principal mérito dos álbuns, e motivo de sua redescoberta, na época ninguém deu muita atenção à qualidade de seu canto.
“Eu achava aquilo tudo muito chato, uma porcaria”, diz Paulinho. “E musicalmente não era. Mas eu pensava que essas letras, falando daquelas coisas… Anos depois, Ed Motta me falou que o disco ‘Racional’ estava valendo uma grana. Aí comecei a perceber. Hoje tem DJs e críticos americanos que comentam. Fui ouvir no ano passado e tem muita coisa legal.”
O guitarrista também afirma ser mentira a história de que os instrumentos todos foram pintados de branco. “Ninguém vai pintar um trombone, porque vai estragar o instrumento”, diz. “Ele nunca mandou pintar bateria. Só pintamos alguns amplificadores antigos e um órgão Hammond de madeira.”
O desencanto com a cultura Racional começou com os músicos, primeiro porque eles não entendiam a reprovação à maconha. Paulinho, que fazia faculdade na época, conta que os colegas estranhavam seu jeito de se vestir. Isso sem contar a falta de shows, dado o fracasso de vendas dos discos.
“Ficou todo mundo duro. Ninguém queria contratar. As rádios não tocavam. Aí Tim acabou com esse negócio”, ele diz. “A pessoa tinha que ler e reler. Tim falava ‘leia e releia’, mas era tudo a mesma coisa –a origem da humanidade, de onde viemos e para onde vamos, a formação do universo. Fui enchendo o saco, e os músicos também.”
Paulinho também desmente outra história desse período –ou pelo menos uma parte dela. Nelson Motta afirma na biografia sobre Tim Maia, “Vale Tudo”, que o cantor surgiu pelado na janela gritando que “Universo em Desencanto” era uma farsa.
“A gente se juntou no apartamento dele em Copacabana e ele ficou gritando –‘Universo em Desencanto é uma mentira, vou fumar um baseado aqui na janela!'”, diz. “Mas ele estava vestido. Não estava nu. Até porque tinha gente da família dele lá. Me lembro do irmão, mas tinham outras pessoas.”