SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Principal palestrante no 3º Encontro de Cidades Responsivas, a ser realizado em agosto em Porto Alegre, o arquiteto francês Alain Bertaud não gosta da forma como as grandes cidades brasileiras tentam induzir seu crescimento por meio de um Plano Diretor com vigência de ao menos uma década.
Autor de “Ordem Sem Design – Como os Mercados Moldam as Cidades”, uma referência para a discussão sobre o papel do setor econômico no desenvolvimento urbano, pesquisador sênior do Marron Institute of Urban Management da Universidade de Nova York e ex-urbanista chefe do Banco Mundial, Bertaud prega a necessidade de ajustes contínuos das regras à dinâmica do setor imobiliário e a integração de economistas às equipes de urbanismo das prefeituras. “Se você não entende o mercado, vai estragá-lo”, afirma.
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PERGUNTA – O senhor costuma dizer que planejadores urbanos devem respeitar o papel do mercado na dinâmica das cidades. Conte um pouco das experiências que o levaram a essa conclusão.
ALAIN BERTAUD – Passei cerca de três ou quatro meses em Chandigar, na Índia. Eu tinha um emprego no departamento de planejamento urbano. Pelo fato de estar morando lá, percebi as deficiências dessa abordagem da cidade como um grande edifício que precisa ser projetado. A maioria das pessoas que trabalhavam na construção da cidade não tinha condições de morar nela. Moravam em favelas.
Mas, com meus amigos, depois do trabalho, se queríamos ir a um restaurante ou café, íamos para a favela, porque era lá havia boa comida e era mais acessível.
Então, de repente, percebi que essa ordem espontânea era uma resposta à ignorância do planejador ou arquiteto que estava projetando uma cidade de forma abstrata.
Observar muitas cidades me ajudou a perceber elas têm a mesma fisiologia. Essa fisiologia faz parte do mercado.
Tive a sorte também quando, mais tarde, trabalhei para o Banco Mundial, na China, ainda sob o regime de Mao [Tse-Tung], antes da reforma, e na antiga União Soviética.
Aprendi mais sobre a importância do mercado nas cidades da China e da Rússia porque a ausência de mercado me mostrou que, se você quer aprender sobre a importância do cérebro, deve ir a um hospital e ver o que acontece com pessoas que sofreram um AVC.
Na Rússia e na China não havia um mercado imobiliário. Então, as coisas simplesmente não mudavam.
No centro de São Petersburgo havia um enorme depósito de carvão que estava lá desde a época dos czares [antes de 1917].
O lugar já tinha uma estação de metrô e o depósito era muito inconveniente. Mas eles não o mudavam. Como a terra não tinha preço, o que importava era que mover o depósito custaria muito dinheiro. Se houvesse mercado, o preço do terreno teria pago em grande parte o transporte do carvão para outro lugar, e você teria construído um prédio de escritórios ou residências lá.
Apesar de muitos arquitetos e urbanistas sonharem com a possibilidade de construir uma cidade fantástica sem enfrentar a questão do preço da terra, eu percebi que o mercado é importante.
P – No seu livro, o senhor detalha como o urbanismo da União Soviética influenciou arquitetos marxistas e menciona o brasileiro Oscar Niemeyer. Tais problemas se repetiram na construção das cidades brasileiras, especialmente em Brasília?
AB – Brasília tem um gradiente de densidade [demográfica]. Isso significa que a densidade é alta [nos arredores] porque os preços dos terrenos são altos no centro e diminuem [com o distanciamento].
Brasília tem o mesmo perfil de Moscou: a densidade aumenta com a distância. Isso é típico de uma cidade sem mercado de terras. É muito ineficiente em termos de transporte porque a maioria das pessoas está longe do trabalho.
Eram regimes diferentes, claro, o Brasil nunca foi como a União Soviética, mas, digamos, na época, havia uma certa simpatia pelo marxismo. O resultado é o mesmo, embora o Brasil seja muito diferente da Rússia.
Brasília não toma emprestado nada da tradição brasileira. É uma cidade completamente artificial, baseada em uma ideologia. Para mim, uma cidade não é feita de estradas e prédios. O que importa são as pessoas.
P – A legislação brasileira determina que as grandes cidades tenham planos para direcionar o desenvolvimento urbano, mas o senhor parece ver isso como um problema.
AB – Você tem que permitir o crescimento, mas não deve projetar crescimento. Veja, você não sabe qual é a tecnologia que vai surgir no transporte, por exemplo, nem consegue prever choques como a pandemia de Covid ou a quebra do comércio mundial por causa da tarifa de [Donald] Trump, um choque que certamente impactará o Brasil, mas não sabemos exatamente qual será o impacto.
Cada cidade brasileira é obrigada a fazer um Plano Diretor a cada 10 ou 15 anos, mas eu não sou um entusiasta disso.
P – Então o senhor realmente não gosta da ideia de ter um Plano Diretor?
AB – Não, de jeito nenhum. Do jeito que é feito há um esforço concentrado nesse planejamento durante dois anos. O governo gasta muito dinheiro, contrata consultores e produz um documento com 20 volumes. Depois, esses consultores vão embora e a cidade não tem recursos para realmente monitorar o que está acontecendo.
P – Qual a alternativa?
AB – Você deveria gastar o dinheiro para reforçar o departamento de planejamento da cidade com uma equipe permanente e capar de entender o crescimento espontâneo.
Você tem que monitorar [a cidade] a cada trimestre porque os preços mudam o tempo todo. Em alguns bairros os preços podem subir, em outros podem cair ou estagnar. A densidade pode mudar em um bairro, não em outro.
Os planejadores vão fingir que sabem como vai ser o futuro, mas estarão completamente errados. Agora, não estou dizendo que você não deve fazer projeções. Mas as projeções são apenas projeções. Quando você monitora, quando tem uma equipe suficiente para monitorar o que está acontecendo, você pode modificar essas projeções.
O mesmo dinheiro gasto no Plano Diretor deveria ser investido na cidade, para reforçar a equipe e contratar economistas.
P – Acho que alguns urbanistas vão odiá-lo depois desta entrevista.
AB – Não, não, eu só quero dar a eles mais responsabilidade (risos).
Sabe, no final do século 19, diziam aos arquitetos que eles tinham que trabalhar com engenheiros porque as estruturas estavam se tornando mais difíceis de projetar. Durante algum tempo, eles se recusaram terminantemente, mas acabaram percebendo que os engenheiros eram muito úteis quando precisavam desenhar um prédio muito alto.
Acho que incluir economistas traria exatamente a mesma vantagem para o planejador urbano. Então, o que estou dizendo que o planejador urbano deveria ter um papel muito maior, ajustando o plano a cada ano, dependendo da economia da cidade.
P – O mercado é uma força poderosa quanto à sua capacidade de moldar as cidades. Não caberia ao planejador urbano também estabelecer limites a essa força?
AB – Concordo plenamente que isso pode ser um problema, mas se você não entende o mercado, vai estragar tudo. Sabe, às vezes comparo com a gravidade. Se um prédio desaba, há ação da gravidade. Mas se você passa a achar que a gravidade é algo tão ruim que deva ser desprezada, você constrói um prédio ignorando a gravidade. Eu não gostaria de viver nesse prédio.
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RAIO-X | ALAIN BERTAUD
1939, Marselha (França)
Urbanista francês, radicado nos Estados Unidos, atualmente é pesquisador do Instituto Marron da Universidade de Nova York. Foi urbanista chefe do Banco Mundial e desenvolveu projetos de urbanismo e transporte em cidades da China, Índia, Indonésia, Vietnã e África do Sul.