SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mais de duas décadas separam as primeiras e as últimas imagens utilizadas em “Levados pelas Marés”, em cartaz nos cinemas. Nesse tempo, a forma de filmar o mundo mudou profundamente.
O cineasta chinês Jia Zhangke recicla gravações de projetos anteriores ao compor uma história de amor e refletir as mudanças em seu país. Originalmente não utilizadas, as filmagens partem de câmeras variadas e traçam uma linha do tempo de evoluções tecnológicas.
“Erramos muito nas primeiras tentativas de edição. Então voltei ao início e repensei tudo. Me afastei da narrativa rigidamente planejada, porque a realidade não segue um arco claro. Nossos dias são moldados por encontros casuais, momentos perdidos e fios invisíveis. Percebi que o filme precisava refletir esse espírito”, diz o diretor, cujos materiais vão do início da década de 2000 aos anos da pandemia de Covid-19.
Casado com Qiao Qiao, papel de Tao Zhao, Guo Bin, personagem de Li Zhubin, abandona a esposa e decide arriscar a vida na metrópole. Anos mais tarde, ela parte em busca do marido. O ritmo cosmopolita contrasta com o das províncias interioranas e a trama expõe efeitos da abertura econômica na China.
Nascido em Fenyang, cidade rural reconhecida pela mineração e que intitula um documentário de Walter Salles dedicado ao cineasta, “Jia Zhangke, um Homem de Fenyang”, ele centraliza mudanças urbanas e seus falsos avanços sobre as condições de vida. É o caso da hidrelétrica das Três Gargantas, obra iniciada em 1994 que tirou o lar de muitos chineses e destruiu diversas áreas históricas.
Centrais em seu “Em Busca da Vida”, drama de 2006 sobre um homem que volta ao lar e testemunha os impactos da construção, os arredores da usina retornam entre as paisagens de “Levados pelas Marés”. O casal atravessa campos arrasados, tijolos de prédios destruídos e estátuas milenares. São ruínas que se sobrepõem ao presente.
“Ao filmar a natureza-morta, permito que a câmera se demore. O mesmo se aplica às pessoas, sejam atores ou pedestres, especialmente em close-ups. O público pode até sair brevemente da trama, e eu espero que esse contato com elementos que carregam peso, textura e presença permitam uma interação mais profunda”, afirma o diretor.
Apesar dos planos de longa duração, aqui a efervescência também une os fragmentos desconectados. Luzes coloridas, músicas eletrônicas e ambientes festivos, geralmente tomados por corpos dançantes, naturalizam as transições entre a dupla de personagens e a dissolução das interpretações iniciais.
É algo que lembra, mesmo com maior intensidade, outros títulos de Zhangke caso de “Plataforma”, de 2000, em que um grupo de jovens artistas espelha modificações na China e desafia o isolamento humano recente, numa época em que a aproximação física trazia possíveis perigos.
Junto de outros medos do cineasta em “O Mundo”, por exemplo, ele lê a globalização como apagamento de culturas locais, foi a pandemia, inclusive, que lhe mostrou a necessidade de concluir o projeto.
“Ao organizar os materiais, não pude deixar de notar a energia que pulsava nos primeiros anos do novo século. Havia um tipo de exuberância social, nas mulheres cantando pelas ruas, pessoas correndo pelas rua, ou um homem dançando sem camisa ao ar livre. Hoje, essa vitalidade parece ter sido formatada, como se algo íntimo e impulsivo tivesse sido silenciado.”
Com o tempo, as investigações de Zhangke se enquadram em estilos mais narrativos. Seu apego a contos de gangsteres e experimentações com o melodrama resultaram em títulos como “Amor Até as Cinzas” e “As Montanhas se Separam”. Vidas à margem permanecerem como foco e a praticidade de câmeras portáteis preservou o improviso diante de roteiros mais elaborados.
“As cenas em si passam devagar e com cuidado, mas a trama avança com grande eficiência. Sinto que isso se alinha ao modo como experimentamos a vida. O tempo passa muito rapidamente e não são os anos que ficam em nossa memória, mas passagens específicas, fragmentadas”, afirma Zhangke.
Em “Levados pelas Marés”, esse hibridismo acontece principalmente nas cenas que o diretor filmou especificamente para o longa. É o momento em que máscaras ocultam os rostos, robôs auxiliam idas ao mercado e celulares apitam por todos os lados. É também quando Qiao Qiao e Guo Bin enfim se reencontram. Os 20 anos que os separam não se resumem a palavras e o silêncio os divide.
Entre testes com inteligência artificial este ano, Zhangke fez ” Wheat Harvest” seu primeiro curta-metragem usando essas ferramentas e o gosto por plataformas como o TikTok, ele defende que as novas tecnologias jamais substituirão a humanidade.
“É natural que esses avanços tragam ansiedades. Mas percebi que nenhum algoritmo pode substituir o impulso de pegar uma câmera, entrar no mundo e se conectar com a vida. Talvez minha verdadeira ansiedade seja em relação ao esquecimento. Sempre vi o cinema como uma forma de lembrar. É, em certo sentido, um ato de fé.”
LEVADOS PELAS MARÉS
– Quando Em cartaz nos cinemas
– Classificação 14 anos
– Elenco Zhao Tao, Li Zhubin e Pan Jianlin
– Direção Jia Zhang-ke