(FOLHAPRESS) – Fincada em um solo árido e pedregoso, uma antiga oliveira observa Jerusalém. A cidade está do outro lado de um vale, cercada por uma muralha centenária. Por ela, impérios travaram guerras durante milênios.
É essa árvore que narra o gibi “História de Jerusalém”, que se propõe a contar o que aconteceu nos últimos 4.000 anos e sugerir, no final, futuros possíveis para uma cidade que há muito tempo não vive em paz.
A HQ saiu em 2022 na França, com roteiro de Vincent Lemire e arte de Christophe Gaultier. A versão em português é publicada agora pela editora Nemo, na tradução de Bruno Ferreira Castro e Fernando Scheibe.
É um impressionante volume que, em pouco mais de 200 páginas, consegue condensar milhares de anos. Seu maior mérito é a pesquisa histórica, embasada em fontes primárias e secundárias, todas sinalizadas.
Lemire, o roteirista, é um historiador especializado na cidade. Em particular, estuda o bairro marroquino que ficava diante do Muro das Lamentações e foi demolido por Israel para abrir um espaço de oração.
A escolha de uma árvore milenar como narradora é interessante, por fixar a perspectiva em um ponto específico e neutro. A oliveira conta, pouco a pouco, como essa cidade foi construída e destruída tantas vezes.
A erudição de Lemire aparece na quantidade de detalhes, com citações de relatos de viajantes que passaram por Jerusalém. Alguns deles aparecem ao lado da oliveira, que escuta e reproduz suas palavras.
As informações podem cansar o leitor que não tem familiaridade com o tema. Mais do que uma história em quadrinhos, o livro às vezes parece ser uma história ilustrada, encadeando nomes e datas.
O traço de Christophe Gaultier ajuda a amortecer a overdose informativa. Seu belo estilo traduz algumas das características dos gibis franco-belgas, com as linhas definidas e o exagero de formas humanas.
Gaultier tem uma carreira longa, tendo trabalhado na celebrada animação “As Bicicletas de Belleville”, de 2003, e ilustrado diversos gibis, como “Clichés – Beyrouth 1990”, onde retratou a guerra civil libanesa.
Além da densidade de informações, outro ponto incômodo é que o texto usa a palavra Alá para se referir ao deus do islã. Alá, porém, é o termo árabe para Deus. É como sugerir que os americanos rezam para “God”.
Não é bem um detalhe. Esse tipo de escolha acaba retratando o islã e os muçulmanos como excepcionais, como se não fizessem parte de um sistema cultural mais amplo que os entrelaça a judeus e cristãos de modo profundo.
A própria história de Jerusalém exemplifica esse emaranhado. A cidade é sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos, que a controlaram em diferentes momentos. Isso está bastante evidente no gibi de Lemire.
O livro começa com o estabelecimento das primeiras populações sedentárias em torno de um fio d’água. A cidade, ainda insignificante naqueles anos, foi cercada por uma muralha. Surgem, em seguida, as narrativas bíblicas sobre os primeiros reis judeus em Jerusalém e a incorporação do monoteísmo. A oliveira se recorda, por exemplo, da construção do templo do judaísmo.
A passagem de Jesus pela cidade é, curiosamente, contada com pressa. Há apenas oito quadrinhos para mostrar a história bíblica da crucificação, tão fundamental para o cristianismo.
Vêm os árabes séculos depois, trazendo o islã. A religião, surgida na península árabe, se apresentava como uma espécie de correção do judaísmo e do cristianismo, compartilhando muitas de suas narrativas.
Delineando esses denominadores comuns, o gibi tem uma mensagem implícita de coexistência. Ressalta, em diversas passagens, como judeus, cristãos e muçulmanos souberam, no passado, conviver em harmonia.
Não é a situação atual. A HQ narra a fundação de Israel e a expulsão de 700 mil palestinos, chegando aos dias de hoje, quando parece ser bastante improvável que Jerusalém volte a testemunhar a paz.
Lemire e Gaultier encerram o livro, no entanto, com algum otimismo. A oliveira pensa em possíveis futuros -incluindo a destruição da cidade-, mas escolhe acreditar em uma solução de dois Estados confederados. A proposta dos autores, transmitida pela árvore, é a de uma cidade partilhada.
HISTÓRIA DE JERUSALÉM
Avaliação Muito bom
Preço R$ 129,80 (256 págs.)
Autoria Vincent Lemire e Christophe Gaultier
Editora Nemo
Tradução Bruno Ferreira Castro e Fernando Scheibe