RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Assim como muitas outras áreas, o campo das artes visuais assimilou rapidamente a inteligência artificial. Museus incluíram trabalhos produzidos com a tecnologia em suas coleções, obras criadas por ela bateram recordes em leilões e mesmo artistas estabelecidos começaram a experimentar com a ferramenta. Alguns artistas têm se destacado, porém, ao voltar esses sistemas contra si mesmos para expor suas contradições.

“Meu grande interesse sempre foi o de desmascarar uma ideia fraudulenta de que a IA é algo totalmente automatizado e etéreo. Isso não é verdade”, afirma Bruno Moreschi, que, como outros artistas pioneiros na exploração da tecnologia no país, concilia a produção artística com uma carreira acadêmica.

Moreschi conta que começou a trabalhar com a IA por volta de 2010, mais de uma década antes da popularização do ChatGPT. De lá para cá, usou-a para explorar uma variedade de assuntos. Em 2018, por exemplo, ele testou um campo dessa tecnologia chamado de visão computacional, que ensina máquinas a ler imagens, para rotular o acervo de um museu na Holanda em conjunto com o também pesquisador Gabriel Pereira.

O resultado do experimento, que deu origem ao curta-metragem “Recoding Art”, ou recodificando a arte, foi a classificação de obras-primas de Pablo Picasso, entre outros, como “eletrodomésticos e produtos de decoração”. Uma evidência, ele diz, de como a IA “vê o mundo sob um ponto de vista capitalista e consumista até mesmo em um museu”.

Um outro trabalho, desenvolvido há cinco anos com seus colegas do Gaia, o Grupo de Arte e IA do Centro de Inovação da USP, buscava jogar luz sobre a mão de obra invisível que sustenta a IA. São aqueles trabalhadores que realizam microtarefas que os computadores têm dificuldade de fazer sozinhos, como identificar objetos em imagens, moderar conteúdo, transcrever áudios ou classificar dados, em geral por preços irrisórios.

Na obra, que ocupou a plataforma de arte digital Aarea ao longo de cerca de um mês, internautas podiam conversar diretamente com cinco desses trabalhadores. “A IA é parte de um todo maior: exploração do trabalho humano, gasto de energia, controle social e até mesmo práticas históricas que foram iniciadas muito antes dos computadores”, como o imperialismo e o colonialismo, diz Moreschi.

A despeito dessas críticas, o artista não é fatalista no que se refere à tecnologia. Vide um de seus projetos mais recente, “Acapulco”, longa-metragem dirigido com Pedro Gallego que registra o esforço de um grupo de especialistas, programadores e trabalhadores remotos para pensar como a IA “pode ser radicalmente (re)treinada ou destreinada”, nas palavras de Moreschi.

Essa ideia de reprogramação é, aliás, central no trabalho de muitos outros artistas que buscam subverter a lógica da IA, baseados na ideia de que o que ela produz depende dos dados de que ela se alimenta.

Um exemplo é Cibelle Cavalli Bastos. Recusando a separação entre os âmbitos real e digital, Cibelle –que se declara uma pessoa não binária, ou seja, que não se identifica como homem ou mulher e usa pronomes neutros– diz entender o corpo humano como uma tecnologia. A consciência seria, assim, um sistema operacional, e a forma como nos comunicamos, um modelo de linguagem ou GPT. Já a misoginia, a transfobia, a homofobia, o racismo e o classismo seriam “vírus, malwares sociais” que deveriam ser ejetados do sistema.

É justamente essa limpeza radical que Cibelle diz querer realizar por meio de sua obra. Seja em seu perfil @aevtar nas redes sociais onde, afirma, vai o tempo todo de encontro ao que os algoritmos estabelecem como desejável. Ou em projetos em que lida diretamente com a IA, caso de um disco, com lançamento previsto para este ano, com faixas criadas em conjunto com a tecnologia, e de um plugin do ChatGPT acessível em cibellecavallibastos.xyz que permite aos interessados em seu trabalho conversar com uma espécie de avatar seu. “Estou infectando esse modelo de linguagem do jeito que eu o uso”, diz.

Assim como é o caso de Moreschi, a visão de Cibelle da IA não é de todo negativa. “É um instrumento. É o jeito que você usa”, afirma. “Agora, não podemos esquecer que estamos em um mundo infelizmente supremacista branco”, acrescenta. Ou, tomando emprestado um trecho da narração de uma de suas obras mais recentes, uma animação que mostra seres humanos com os olhos grudados em seus smartphones que parecem derreter à medida que as distorções da IA sobre eles se intensifica, “nós somos os algoritmo, nós sempre fomos o algoritmo”.

O americano Trevor Paglen revelou os vieses problemáticos da visão computacional, muitas vezes tida como neutra, em ‘From Apple to Anomaly’ (2020) Imagem retirada do site do artista A imagem apresenta uma colagem de várias fotografias de rostos humanos, organizadas em um padrão de quadrados. Algumas imagens são em preto e branco, enquanto outras são coloridas. “A IA é uma ferramenta, mas uma ferramenta que eleva muito todas as problemáticas de antes”, afirma Livia Benedetti, cofundadora da plataforma Aarea ao lado de Marcela Vieira. A dupla acaba de abrir inscrições para um curso de mentoria para artistas interessados em utilizar ferramentas de IA. “Como criar um prompt novo? Como sair do já conhecido? O que a gente dá no prompt é muito um retrato de uma sociedade formatada por uma época”, diz Vieira, citando as instruções dadas aos sistemas de IA para a realização de tarefas.

Por fim, mesmo trabalhos que não têm como objetivo principal criticar a IA também podem levar a uma reflexão sobre os seus impactos na sociedade.

Talvez seja este o caso das pinturas mais recentes do artista Victor Mattina. As imagens que elas reproduzem são a princípio criadas por uma IA, no caso o aplicativo Midjourney, a partir de instruções propositalmente contraditórias. Estratégias para produzir esse efeito incluem usar figuras de linguagem e pedir simultaneamente algo e o seu oposto nos textos dos prompts.

Após receber de volta, em baixa qualidade, essas imagens da máquina, o artista seleciona algumas delas e as adultera. É só depois desse processo que ele as pinta, “explodindo-as” na tela, segundo a sua descrição.

Mattina afirma que sua busca com toda essa dinâmica é entender como é possível inovar uma linguagem tão antiga quanto a da pintura. Uma das respostas que ele parece ter encontrado ao longo do caminho foi a percepção de que esse suporte pictórico tem um potencial único para transportar o digital para o analógico, dando um peso conceitual a imagens que, pelo seu próprio excesso, perderam muito de seu valor na contemporaneidade.

Ao mesmo tempo, pondera o artista, o retrabalho da imagem digital também pode ser encarado como uma forma de poluir, nas palavras dele, os modelos de IA. “As IAs são treinadas em cima do mundo real. Então, se eu pinto uma imagem de IA e ela é devolvida para ela, é quase como se ela estivesse regurgitando.”