SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ruas destroçadas, casas em chamas e pessoas em fuga. Esse era o cenário caótico do sismo de Kanto, um forte terremoto que atingiu o Japão por mais de quatro minutos em 1923, transmitido em minúcias em “Vidas ao Vento”, filme do mestre da animação Hayao Miyazaki. Uma cena de quatro segundos, em que uma multidão tenta escapar de um vilarejo incendiado, demorou mais de um ano para ser feita.

O esmero de Miyazaki fez a fama do Ghibli, estúdio de animação japonesa cofundado por ele. Mesmo em tempos de computação gráfica e 3D, suas histórias desenhadas à mão, quadro por quadro, conquistaram fãs fiéis pelo mundo todo. Eles se revoltaram quando milhares de imagens com o estilo do estúdio foram geradas por inteligência artificial e compartilhadas à exaustão nas redes sociais.

A trend, como é chamada uma tendência viral nas redes sociais, não se limitou a inflamar o debate entorno da propriedade intelectual na era da inteligência artificial. A discussão se expandiu para um dilema filosófico -é possível fazer arte com IA ou a tecnologia é uma ameaça à criação?

A coisa escalou a tal ponto que a OpenAI, empresa que comanda o ChatGPT, não reproduz mais o estilo de artistas vivos ou que tenham obras protegidas pela lei de propriedade intelectual. As regras variam de país em país -no Brasil, um trabalho cai em domínio público apenas 70 anos após a morte de seu criador.

Já não é mais possível pedir à ferramenta para transformar o retrato de uma pessoa num desenho de qualquer artista. A reportagem fez testes com nomes como Romero Britto, Mauricio de Sousa e Fernando Botero, por exemplo. Questionada pela Folha sobre o caso, a OpenAI disse as restrições foram aplicadas de forma automatizada e manual, sem dar mais detalhes. “Todo conteúdo gerado pelo DALL-E e pelo ChatGPT deve estar em conformidade com as Políticas de Uso da OpenAI, que proíbem infrações de direitos de propriedade intelectual ou deturpe o conteúdo criado por indivíduo ou artista específico”, respondeu, por e-mail, a empresa.

Fora das telas, cada vez mais artistas plásticos estão levando a museus obras feitas com IA. Mayara Ferrão, por exemplo, usa a ferramenta para criar fotografias antigas de mulheres negras e indígenas trocando carícias e beijos, como se gerasse a memória de um passado queer nunca registrado. O trabalho fez parte da mostra “Histórias LGBTQIA+”, no Museu de Arte de São Paulo.

Já o coletivo Forensic Architecture, que estará na próxima Bienal de São Paulo, usa IA para destruir e reconstruir edifícios em zonas de guerra, violência e crise climática, mirando a denúncia das condições de vida da população nesses lugares. No Brasil, há ainda o Festival Internacional de Linguagem Eletrônica, o File, dedicado a expor, uma vez ao ano, obras de artistas que criam com tecnologia.

Mas há diferença entre a trend do Ghibli e trabalhos como os de Ferrão. Para a crítica de arte Giselle Beiguelman, é preciso diferenciar uma tendência, ou seja, algo que é repetido massivamente por usuários nas redes sociais, de uma obra de arte. “Essas trends têm uma fórmula aplicada ingenuamente, como antigamente existiam filtros no Photoshop para imitar Andy Warhol –e você não virava um Andy Warhol só por causa disso”, diz.

O processo de criação artística com IA envolve etapas complexas, segundo a especialista, e é intencional. “Você confronta a máquina e é preciso adaptar os comandos em função da criação que está sendo desenvolvida. Não é só digitar qualquer coisa.”

Como qualquer ferramenta, quando usada de forma superficial, a IA não é capaz de gerar algo interessante ou inovador, acrescenta Renato Gonçalves, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing, a ESPM, e autor do livro “Cr(IA)ção”. Por isso, ele diz, o repertório do artista segue essencial. “Você tem que saber de direção de arte, de pose, enquadramento, câmera, lente. Se não souber dominar a máquina e fizer perguntas muito básicas, vai ficar sempre com um resultado muito básico”, ele afirma.

Nesse caldo há, ainda, a discussão a respeito de direito autoral, um entrave comum na produção artística com IA. Em casos como o do Ghibli, em que o estilo e a proposta da imagem gerada remetem diretamente ao original, é mais fácil identificar uma infração. É o caso ainda da Turma da Mônica, que também teve seu estilo copiado de forma viral por internautas, com o ChatGPT, em maio. Qando a ferramenta copia de forma incontestável o estilo de um artista, as empresas de IA podem ser responsabilizadas por infração de propriedade intelectual, diz Cristiane Olivieri, advogada especialista em direito cultural.

Mas trends como essas são apenas uma pequena fração do que vem sendo produzido com a tecnologia, e na maioria dos casos é impossível identificar o que foi utilizado como base para criar algo novo, já que IA se alimenta de várias obras que estão na internet, protegidas ou não, e faz uma mistura delas.

Esses casos são uma causa perdida, diz a advogada. A apropriação já é legitimada no mundo da arte, com exemplos incontáveis pela história, entre eles colagens de Pablo Picasso em suas pinturas ou os trabalhos de Andy Warhol, que criou serigrafias coloridas a partir de fotografias de astros como Prince clicadas por outros artistas.

Mas essa é uma discussão que ainda não está pacificada, sobretudo quando a obra tem fins comerciais. Tanto é que a Fundação Andy Warhol foi processada pela fotógrafa que retratou Prince. Seu trabalho foi usado por Warhol para a produção de serigrafias que estamparam uma capa da revista americana Vanity Fair. O caso teve desfecho só no ano retrasado, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos concluiu que a serigrafia tinha “substancialmente o mesmo propósito” da fotografia e que Warhol violou os direitos autorias da artista.

Para além dos conflitos jurídicos e éticos, há uma discussão estética. Os próprios artistas divergem, por exemplo, no que pensam sobre o fazer artístico e como a IA pode atrapalhar ou contribuir com a sua criação.

A quadrinista Helô D’Ângelo teme que a contratação de artistas diminua se a IA virar moda, ou que a arte se torne pasteurizada, sem identidade própria. “Se eu delegar para uma máquina, eu, enquanto profissional criativa, não faço sentido de existir”, diz. “Parte importante de produzir arte é a experimentação, o erro. Experimentar materiais, cores, se sujar, fazer bagunça. A IA tira isso da gente”, diz.

Há quem discorde. Gustavo Von Ha, artista que usa IA em seus trabalhos, diz que a tecnologia nada mais é do que uma ferramenta que combina símbolos de acordo com os comandos do criador -em outras palavras, ela não exclui a experimentação humana.

Ele cita como exemplo “Von Britney”, uma animação de sua autoria que faz parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. É um vídeo curto com fundo colorido e uma foto de Britney Spears que virou meme nos anos 2000. A feição da cantora muda até se transformar num autorretrato de Von Ha. A ideia era questionar a individualidade na era da internet.

“Nenhuma máquina está disposta a lidar com o fracasso, com o erro. Nós lidamos com a angústia existencial, com o nascimento, desenvolvimento, as perdas, dores, alegrias e os amores”, diz Von Ha.

A tecnologia, no entanto, pode ser estimulada a lidar com a falha a partir do momento em que ela é estimulada por um ser humano para produzir outras versões de um mesmo trabalho, por exemplo. O cineasta Bennett Miller, por exemplo, expôs na galeria suíça Gagosian 20 imagens feitas com IA, mas, para chegar a essa seleção, gerou e modificou mais de cem mil ilustrações.

Um dos nomes mais notórios no debate sobre o uso de IA na arte, Ted Chiang, um renomado escritor americano de ficcção científica, diz que casos como os de Miller são exceção. Ele opina que as ferramentas como ChatGPT não são criadas para esse tipo de uso.

Chiang diz, em um texto na revista The New Yorker, que, partindo do pressuposto de que fazer arte é tomar decisões, a tecnologia, ao fazer suas próprias escolhas, está substituindo o trabalho do artista. Ao passo que um escritor toma ao menos uma decisão para cada uma das palavras que escreve, ele diz, o artista que manipula a IA faz infinitamente menos escolhas.

Há, por fim, um debate sobre a democratização do fazer artístico. Enquanto alguns especialistas avaliam que, com a IA, ficou mais barato e acessível fazer uma ilustração ou uma música, há quem diga que é preciso pagar demais para tirar proveito da ferramenta -controlada por poucas empresas, que não deixam claro como alimentam a base de dados da tecnologia. Se encontrar definições jurídicas e estéticas para arte já era uma dor de cabeça no meio criativo, a IA põe em curto-circuito repostas fáceis.