SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Durante todas as noites em 1988, Ana Amorim desenhou num caderno mapas que mostravam seus percursos durante o dia os quadrados representavam a sua casa ou algum ambiente onde ela tinha estado nas horas anteriores, e as linhas indicavam os deslocamentos de um ponto ao outro.
Regrada, a artista repetiu o projeto em outros momentos, registrando a passagem do tempo. Ao final de cada etapa, pintava os mapas em telas ou bordava em tecidos. As obras não levavam a sua assinatura, mas códigos que ela chama de localizadores, uma sequência numérica composta pelo dia do ano, o número de horas e de dias até o fim do ano e a sua idade.
Assim como outros trabalhos seus, a exemplo das performances em que riscava um traço por segundo nas páginas de um caderno durante uma hora, as obras de Amorim resultam de regras criadas pela artista. “Para mim o mais importante é a decisão conceitual que tomei para aquele ano. A decisão para mim é o trabalho”, ela diz, apontando para uma ficha na parede do museu onde lemos as instruções de cada obra. “A forma não é tão importante. Não sei que cara vai ter e não me importa muito.”
Amorim, uma representante da arte conceitual brasileira que produz continuamente há mais de 40 anos, é tema agora de uma grande exposição no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, o MAC. A mostra reúne exemplos de todos os momentos de seu trabalho, pouco exibido porque a artista deu um jeito de esconder a própria obra ao tomar atitudes que expõem o funcionamento do mercado de arte.
Desde jovem, quando cursava um mestrado em artes nos Estados Unidos na década de 1980, após se formar em artes e em matemática em São Paulo, Amorim decidiu que não venderia seus trabalhos nem os mostraria em galerias ou locais que cobrassem ingresso. Ela seguiu essas regras até 2019, quando voltou a se relacionar de maneira mais consistente com galeristas e instituições.
“A arte deveria fluir livremente. Você deixa ali e as pessoas vêm, como pintura rupestre. A ideia de ter um lugar fechado, privado, é uma coisa do capitalismo. Precisa cobrar, porque senão como a galeria vai sobreviver. Eu queria viver livre disso”, ela afirma, acrescentando que suas decisões eram poéticas e não políticas. “Era uma coisa do lugar em que eu gostaria que a arte existisse.”
A postura radical fez com que ela fosse praticamente excluída do sistema da arte, organizado de uma forma que obriga os artistas, numerosos, a competirem pelo limitado espaço nas paredes das galerias, dos museus e das bienais. Para se sustentar, Amorim deu aulas de inglês no Brasil e foi professora de adolescentes com necessidades especiais na Inglaterra, além de ter outras ocupações no período em que morou entre a Austrália e a Nova Zelândia.
Isso não impediu que ela seguisse com sua prática artística, criando em casa obras com materiais baratos como papel e caneta, linha e tecido e recortes de jornal. Num trabalho de 2001, exibido agora pela primeira vez, a artista montou um grande mural com trechos de notícias relacionadas a um programa de empréstimos do Fundo Monetário Internacional, política que obrigou países a cortarem gastos em áreas públicas como saúde e educação.
Ela considera essa obra como uma abertura sua para o mundo, quando deixou de criar apenas voltada para as suas questões. Estão também expostos vídeos nos quais ela conta segundos outra de suas práticas recorrentes, em lugares que estiveram sob ataque, como a Cinemateca Brasileira durante o governo de Jair Bolsonaro e a cidade mineira de Brumadinho, que foi atingida pela lama da mineradora Vale. São protestos silenciosos, uma qualificação que pode ser aplicada a boa parte de seus trabalhos.
Jacopo Crivelli Visconti, o organizador da exposição, observa que o que caracteriza Amorim como artista é a sua própria produção, não a validação do ecossistema da arte. “É o trabalho que te define. É uma lógica proletária”, ele diz, olhando para a artista. “Não é a avaliação que o sistema vai fazer.”
O trabalho de Amorim é um exemplo de arte conceitual, um tipo de prática em que “a ideia ou o conceito é o aspecto mais importante da obra”, na clássica definição do artista Sol LeWitt, de 1967. “Quando um artista utiliza uma forma conceitual de arte, isso significa que todo o planejamento e as decisões são feitos com antecedência e a execução é uma mera formalidade”, escreveu o americano.
O movimento, que teve seu auge no final da década de 1960 e nos anos 1970, foi materializado em trabalhos de nomes como Joseph Kosuth, Joseph Beuys, On Kawara, Sophie Calle e Marcel Broodthaers. No Brasil, Cildo Meireles e Jac Leriner são citados como expoentes, mas há também novas gerações desenvolvendo este tipo de arte, mais ligada ao pensamento e que pode tomar formas diversas.
São nomes como Daniel de Paula que desenterra rochas do solo de São Paulo para discutir a privatização do espaço público e já vendeu a sombra de sua ex-galerista ou Juliana Frontinn, que tenta dar forma ao vazio ao trabalhar com blocos cobertos por uma resina que amarela com o passar do tempo, a exemplo dos que estão expostos agora numa mostra na galeria Luisa Strina, em São Paulo.
Em outro trabalho de Frontinn, em cartaz agora na galeria Yehudi Hollander-Papi, a artista parte de um monólogo de Samuel Beckett, “Not I”, para debater os conflitos que temos com nós mesmos, segundo ela. A instalação tem dois blocos no chão posicionados onde seria a marcação dos atores de uma peça, um trecho do texto do dramaturgo escrito na parede e uma trilha sonora eletrônica que dá a tudo um clima de tensão. “É uma coisa que está na iminência de acontecer”, ela diz, sobre a obra.
Matheus Yehudi, o galerista de Daniel de Paula, de Frontinn e de um elenco de artistas experimentais na faixa dos 40 anos, afirma que há uma leva de novos colecionadores que querem ir além das obras baseadas em imagem e “explorar outros processos de pensamento”, ou seja, entender as ideias por trás dos trabalhos nos quais investem.
Ele teoriza que isso se deve à exaustão gerada pela saturação visual do Instagram e de imagens criadas por inteligência artificial a que estamos expostos. “A gente vive num momento em que a arte é constantemente reduzida a um conteúdo visual consumível. Mas penso que estamos retornando a uma desaceleração quase intuitiva da imagem. É um movimento de proteção da arte”, ele diz.
Kiki Mazzucchelli, diretora da galeria Luisa Strina, que representa artistas conceituais há 50 anos, conta ter visto, no último ano, uma volta da comercialização de fotografias e de obras mais difíceis nas edições de Paris e da Basileia da feira Art Basel, a principal do setor, que serve como termômetro do mercado mundial de arte. “As feiras em 2022 e 2023 eram só pintura, pintura, pintura. Isso está começando a mudar”, ela diz.
Mazzucchelli pondera que as pinturas, consideradas de assimilação mais fácil, tendem a ser portas de entrada para quem começa a colecionar. Conforme os novos compradores aumentam seu conhecimento, no entanto, eles se sentem mais confortáveis em adquirir obras “mais difíceis, mas que têm um lastro na história da arte”.
É importante ressaltar que esse tipo de arte, considerada de assimilação difícil por depender de um discurso e nem sempre estar preocupada com a beleza estética, ainda tem pouco espaço no circuito, sobretudo se comparada às tradicionais pintura e escultura.
Pedro Barbosa, um dos principais colecionadores de arte experimental do país, dono de um espaço expositivo na travessa Dona Paula, em São Paulo, chama a atenção para a imensa dificuldade enfrentada por artistas conceituais.
Os jovens artistas dedicados à esta prática, ele afirma, “estão absolutamente excluídos do mercado de arte e excluídos dos espaços expositivos também”, porque a arte experimental “não dá dinheiro para galerista nem frequência para o museu, não só Brasil, mas em nenhum lugar do mundo”. Ele cita alguns museus onde arte conceitual é parte recorrente do programa, como o Mumok, em Viena, e o Van Abe, em Eindhoven, na Holanda.
Barbosa liga a perda de interesse em torno da arte conceitual à derrocada na qualidade do ensino público, algo que, segundo ele, estaria conectada a uma crise do pensamento crítico. “O rico não quer pensar sobre arte. Para que eu vou perder meu tempo pensando se eu posso olhar uma coisa bonita e que pode ter apreciação de capital. Quem compra pintura trata a pintura como ativo, quem compra arte conceitual não a trata como ativo, mas como arte”, ele diz.
Barbosa destaca artistas brasileiros de prática experimental que tiveram ou têm penetração em museus e galerias, como Deyson Gilbert, que expõe em breve na galeria Martins & Montero, e Renata Lucas, que mostrou no final do ano passado na Pinacoteca de São Paulo, além de nomes como Cinthia Marcelle, Clara Ianni, Bruno Baptistelli e Pedro Zylbersztajn. “Capital humano o Brasil tem.”
ANA AMORIM – MAPAS MENTAIS
– Quando Até 5 de outubro. De terça a domingo, das 10 às 21h
– Onde MAC USP – av. Pedro Álvares Cabral, 1.301, São Paulo
– Preço Grátis
JULIANA FRONTINN – THE OTHER POSES A THREAT
– Quando Até 2 de agosto. De terça a sábado, das 11h às 19h
– Onde Yehudi Hollander-Pappi – al. Lorena, 1.295, São Paulo
– Preço Grátis
FARTURA
– Quando Até 9 de agosto. Segunda a sexta, das 10h às 19h; sáb., das 10h às 17h
– Onde Galeria Luisa Strina – r. Padre João Manuel, 755, São Paulo
– Preço Grátis
– Link: https://www.luisastrina.com.br/exhibitions/