SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Taxas de homicídio podem aumentar durante eventos de calor extremo no Brasil. A conclusão é de um estudo, publicado no American Journal of Epidemiology, que observou aumento de 10,6% nos casos de homicídios em períodos em que a temperatura esteve 5°C acima da média por até oito dias.

Essa foi a primeira vez que um estudo comprovou esse tipo de relação no Brasil, que já havia sido observada em cenários de outros países.

Para entender se há uma ligação entre o aumento do calor e a escalada da violência, os pesquisadores analisaram registros de temperatura e dados de homicídios ocorridos no Brasil de 2010 a 2019, em 510 microrregiões.

A metodologia usada comparou o dia em que um homicídio aconteceu com outros dias semelhantes -como outras terças-feiras do mesmo mês e ano, por exemplo- na mesma região. Assim, foi possível verificar se a temperatura estava especialmente alta no dia do crime, isolando o evento climático de outros fatores.

Além disso, o estudo usou um modelo que acompanha os impactos do calor ao longo de até oito dias após o aumento da temperatura.

O médico e professor da USP (Universidade de São Paulo) Paulo Saldiva, um dos autores do estudo, explica que a elevação da temperatura não pode ser encarada como a única razão para a alta nos homicídios. Mas, segundo ele, a análise de uma grande base de dados durante um período de dez anos garante respaldo à metodologia.

“Todo estudo como esse tem limitações intrínsecas, mas não há metodologia individualizada capaz de analisar uma grande base de dados como a que fizemos. Então, embora haja limitações, a pesquisa mostra essa associação [entre aumento do calor e aumento da violência] de forma robusta.”

A análise mostra que mulheres e pessoas de 60 a 69 anos são as mais afetadas quando há aumento de 5°C na temperatura. As mortes por homicídio desses grupos tiveram aumento, respectivamente, de 15,3% e 16,7%, se comparadas à média da população geral.

Segundo Saldiva, no caso das mulheres, essa vulnerabilidade pode estar ligada à violência doméstica. Já entre os idosos, o risco é maior para aqueles que participam de atividades fora de casa e se expõem ao ambiente social.

Ainda de acordo com o artigo, a região Norte apresentou a maior taxa de associação entre mortes por homicídio e aumento da temperatura, enquanto no Sul essa relação esteve mais frágil.

O professor da USP explica que a diferença se relaciona ao fenômeno da aclimatação, ou seja, a forma como diferentes indivíduos se adaptam à mudança de temperatura. “Há mudanças na expressão de alguns genes que se regulam para adaptar o indivíduo à temperatura”, explica.

Embora o corpo das pessoas que vivem em regiões mais quentes, como o Norte, possa estar fisiologicamente adaptado ao calor, o artigo descreve que o ambiente social em que elas estão inseridas segue vulnerável aos efeitos indiretos das altas temperaturas.

Ou seja, o calor excessivo, somado a fatores como desigualdade, baixa presença do Estado, criminalidade e umidade elevada, pode funcionar como um catalisador de tensões que geram agressividade, conflitos interpessoais e crimes por oportunidade.

TEORIAS EXPLICAM RELAÇÃO

O estudo aponta duas teorias que explicam a associação entre aumento do calor e crescimento da violência. A primeira, denominada modelo biológico, diz que quando as temperaturas se elevam, os indivíduos ficam mais irritados e se tornam mais agressivos.

De acordo com Elvira Maciel, médica epidemiologista e professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública e Meio Ambiente da Fiocruz, essa explicação se relaciona com o fenômeno da homeostase. O mecanismo é responsável por manter as atividades do organismo mesmo diante de alterações do ambiente externo, como mudança de temperatura.

Segundo Maciel, no entanto, a capacidade de regulação interna pode atingir um limite em eventos de calor extremo. “Dá para traçar um paralelo com as crianças. Quando o bebê está com muito calor, ele fica irritado. Por isso, os pediatras recomendam dar um banho frio para ele se acalmar”, explica.

Além disso, o calor prejudica o sono e afeta substâncias no cérebro que controlam o humor, podendo aumentar o estresse.

Já a segunda teoria apresentada pela pesquisa, de caráter social-comportamental, afirma que quando há aumento da temperatura, as pessoas tendem a sair mais de casa, participar de atividades externas e se tornam mais vulneráveis a sofrerem agressão.

Esses dois modelos, biológico e social-comportamental, já tinham sido utilizados anteriormente em outras pesquisas para apontar a relação entre aumento da temperatura e episódios de violência. Um artigo de 2021 publicado na revista científica The Lancet mostrou que as mudanças climáticas poderiam ter impacto na violência interpessoal, por exemplo.

Embora os efeitos na temperatura tendem a aumentar nos próximos anos, o pesquisador Paulo Saldiva afirma que não é possível dizer se os casos de homicídios irão acompanhar a mesma tendência.

“Por um lado, vamos enfrentar ondas de calor cada vez mais rapidamente, mas, por outro, essa violência depende muito de outros fatores, como a desigualdade e a pobreza. Então, é difícil afirmar o que vai acontecer no futuro.”