SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Imensas clareiras na floresta, água barrenta, solo revirado. A devastação causada pela mineração ilegal na Terra Indígena (TI) Kayapó, a mais atingida pelo garimpo no país, é chocante -e fica evidente em um vídeo divulgado pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) nesta semana.
As imagens foram produzidas durante ações de desintrusão, para remover invasores do território protegido. As operações, que vêm sendo realizadas há mais de dois meses pelo órgão fiscalizador em parceria com as forças de segurança, escancaram o impacto ambiental massivo causado pela atividade.
Nesta quinta-feira, 17 de julho, o Brasil celebra o Dia de Proteção às Florestas.
A TI Kayapó, onde vivem os povos mebengôkre e isolados do rio Fresco, fica no Pará e tem 3,2 milhões de hectares de extensão. Segundo dados do Greenpeace, até 2024, o garimpo ocupava 16,1 mil hectares do território -o que pode parecer pouco em relação à totalidade da reserva, mas equivale à área de Natal (RN) ou de dez parques Ibirapuera, em São Paulo.
“Primeiro, a área é desmatada e, depois, são formadas crateras para tirar os sedimentos e passar pelo processo de refinamento, até retirar o ouro”, diz Jair Schmitt, diretor de proteção ambiental do Ibama. “É um cenário bastante triste, desolador.”
Na amazônia, o ouro é encontrado em partículas muito finas misturadas ao solo ou ao sedimento dos rios. Assim, para extraí-lo é necessário cavar a terra ou sugar o fundo dos rios, o que é feito com motores e dragas -maquinário grande e caro, que costuma ser destruído em ações de fiscalização.
“O rio Branco foi totalmente assoreado pelo garimpo e o rio Fresco, também bastante afetado pelos dejetos da atividade garimpeira”, afirma Thaise Rodrigues, analista de geoprocessamento do ISA (Instituto Socioambiental).
“As características físicas da água são totalmente alteradas, com a presença de grande quantidade de sedimentos que mudam a turbidez da água, o que ocasiona diversas consequências para a ictiofauna [peixes], por exemplo”, explica.
A lama extraída pelos garimpeiros é misturada ao mercúrio metálico (a mesma forma encontrada em termômetros, por exemplo), que forma uma amálgama com o ouro. Essa amálgama é, então, queimada -como o mercúrio é volátil, quando aquecido ele vira um gás e sobra só o ouro.
Com o descarte da lama contaminada, o mercúrio vai parar no solo e na água dos rios e lençóis freáticos, se espalhando pela floresta. Com a queima, polui a atmosfera.
Nos rios, o mercúrio assume uma de suas formas mais tóxicas. Por meio da ação de microrganismos, ele se transforma em metilmercúrio, que passa a se acumular nos seres vivos.
“Primeiro, ele é acumulado dentro dos organismos, em um processo chamado bioacumulação”, explica a química ambiental Anne Fostier, pesquisadora do Instituto de Química da Unicamp que estuda o ciclo do mercúrio na amazônia.
“Além disso, tem um processo chamado de biomagnificação, que resulta da acumulação ao longo da cadeia alimentar.”
Quando os animais pequenos, que têm concentrações menores do metilmercúrio, são comidos pelos maiores, fazem com que esses peixes carnívoros acumulem esses contaminantes. “E, no final da cadeia, temos o ser humano, que consome os peixes -e preferencialmente os peixes carnívoros, que são mais saborosos, mas são os que contêm mais mercúrio”, diz a pesquisadora.
O problema é especialmente grave em comunidades em que os peixes são a principal fonte de proteína.
“Os impactos causados pela garimpagem vão além da abrangência local e podem se estender por quilômetros nos rios, ameaçando a sobrevivência de povos indígenas e ribeirinhos mesmo em territórios sem a presença da atividade. As populações urbanas que estão nos arredores também podem ser afetadas pelo consumo de peixes”, conta Rodrigues.
Fostier acrescenta que o vapor de mercúrio que vai parar na atmosfera pode viajar distâncias médias e longas. “O mercúrio pode permanecer na atmosfera de cinco meses a um ano. Consequentemente, ele vai contaminar outros ambientes, outros lugares diferentes daquele onde ele é emitido”, destaca.
Há também efeitos ambientais indiretos. Em 2024, a TI Kayapó foi a mais afetada por incêndios florestais que assolaram o país.
“[Foram] 3.246 focos de calor registrados do início do ano até o dia 24 de setembro. Segundo o Ibama e outras autoridades, os incêndios na Terra Indígena Kayapó estão relacionados à atividade garimpeira, o que é confirmado nas imagens do nosso monitoramento remoto”, diz Gregor Daflon, porta-voz da frente de povos indígenas do Greenpeace Brasil.
Segundo a ONG, imagens de satélite mostraram que os focos estavam muito próximos ou sobrepostos a áreas de garimpo ilegal abertas recentemente, indicando que garimpeiros causaram incêndios para encontrar novos espaços para a atividade.
Além de graves, esses impactos sobre a floresta podem ser irreversíveis. Para que o ambiente comece a se recuperar, é necessário, em primeiro lugar, que o garimpo cesse.
O ritmo do desmatamento associado ao garimpo no território Kayapó vem diminuindo. De acordo com dados do sistema Deter, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), a abertura de novas áreas caiu quase 78% de 2019 para 2024, indo de 1.347 para 299 hectares. (Os índices diferem dos apontados pelo Greenpeace porque são utilizados métodos diferentes, com graus de sensibilidade distintos.)
Ainda assim, neste ano, desde o início da operação de desintrusão realizada pelo Ibama, em maio, foram destruídos 117 acampamentos clandestinos, 358 motores de garimpo, 25 escavadeiras hidráulicas, 8 dragas e mais de 21 mil litros de óleo diesel.
Jair Schmitt explica que essas ações de inutilização dos equipamentos são muito importantes para coibir as atividades e têm um impacto financeiro significativo nas organizações criminosas.
“Por exemplo, desde 2023, inutilizamos cerca de 50 escavadeiras no território Kayapó. No mercado, cada uma custa cerca de R$ 1 milhão a R$ 2 milhões. Então, dá para estimar R$ 100 milhões só em prejuízo pela perda desse equipamento. E, se olhar para a cadeia como um todo, com certeza o dano é muito maior, até em termos do ouro não vendido”, projeta.
Além das consequências ambientais, o garimpo também tem impactos sanitários, tanto pela contaminação por mercúrio quanto pelo aumento da malária, já que a perturbação da floresta favorece a proliferação do mosquito.
A presença da atividade ilegal e do crime organizado tem, ainda, um impacto social nas comunidades, com aumento da violência, do consumo de álcool e da prostituição.