FOLHAPRESS – Falta energia elétrica na casa de Ryosuke, bem na noite em que ele encaixota as coisas para uma mudança. Ao se aproximar da janela que capta um pouco da luz da rua, ele percebe que está sendo observado por seu antigo chefe, que sobe o lance de escadas até a entrada da casa. Ryosuke, assustado, espera que o homem desista de tocar a campainha e vá embora.
Um pouco antes, no ônibus com a namorada, ele percebe uma presença sinistra atrás deles. Vira o rosto e o filme fica temporariamente mudo, como se a banda sonora tivesse enguiçado. A figura sinistra desce do ônibus sem se manifestar.
Ryosuke e seus fantasmas? Não exatamente. Mas “Cloud: Nuvem de Vingança” é de Kiyoshi Kurosawa, diretor sempre hábil em explorar atmosferas tenebrosas que raramente se manifestam como num filme de horror convencional. É o grande diretor em atividade no cinema japonês e este filme mostra por quê.
Em alguns momentos, a ameaça parece sobrenatural, com sombras e sensações sinistras. Em outros, parece de algum concorrente ou algum comprador insatisfeito, como indica a peça automotiva arremessada janela adentro do quarto em que dormia a namorada. O cartaz do filme, em todo caso, o apresenta como horror.
Ryosuke não é honesto no que faz. Vende bolsas e peças sem se importar se são falsas. Compra barato para vender caro, não importa a procedência. O que importa é o lucro que virá com as vendas. Tem uma legião de compradores que se tornaram inimigos por se sentirem enganados. Sua ganância começa a se voltar contra ele.
Estamos num mundo cão, em que o acúmulo de dinheiro justifica todas as atitudes. Kiyoshi Kurosawa sempre foi crítico do capitalismo e dos males que causa à sociedade japonesa. Um país, já mostrava Kenji Mizoguchi, em que homens lutam sem escrúpulos por poder e dinheiro.
Interpretado por Masaki Suda, Ryosuke é a cristalização de todas as práticas nefastas desse sistema econômico. Um jovem ambicioso que abandona o emprego numa fábrica mesmo tendo uma proposta de promoção e aumento. Ele quer sempre mais.
Mestre do imprevisível, o cineasta promove uma mudança na segunda metade de “Cloud”, quando a atmosfera de horror se esvai e o filme mergulha no thriller de ação. Temos um jogo de vida e morte que vai culminar em um velho e enorme galpão de fábrica abandonado seu cenário preferido em diversos filmes.
O covarde Ryosuke se revela inexperiente no manejo de uma arma de fogo, chegando a ficar traumatizado no início. Aos poucos, contudo, vai se revelando uma máquina de matar, assim como outros personagens anteriormente mostrados, a exemplo de seu antigo chefe, vivido por Yoshiyoshi Arakawa, e seu jovem assistente Sano, personagem de Daiken Okudaira.
A contaminação pela violência que vemos na série de longas “John Wick” atinge “Cloud” de maneira menos irônica que perturbadora. A violência parece estar na alma dos japoneses, segundo o diretor.
Por mais que esse jogo movido a vingança lembre seus filmes mais antigos, como “O Caminho da Serpente”, longa de 1998 que ele mesmo refilmou e suavizou na França em 2024, na intensidade e na emoção está mais para Takeshi Kitano, Johnnie To e toda uma linhagem do cinema oriental envolvendo crime e perseguição.
Há, porém, o mesmo retrato amargo do Japão contemporâneo, a crueldade e a frieza nas cenas de violência que podemos encontrar com facilidade em seu cinema. Além de tudo, vemos uma liberdade que remete à bela maluquice de “Barren Illusion” (1999) ou “O Sétimo Código” (2013) e pode incomodar quem se preocupa demais com verossimilhança.
Os tiros só são ouvidos pelos personagens quando o diretor quer que eles ouçam. Outros personagens desaparecem no meio do jogo para reaparecer minutos depois, como se estivessem descansando nos bastidores.
A construção da trama não permite que adivinhemos seus caminhos. Estamos tão no escuro quanto Ryosuke ou seus clientes, sem saber quem será enganado e quando. A incoerência é constante, a contradição, também.
A direção, mais uma vez, é marcada pela elegância e pela precisão, com um senso brilhante de espaço, um trabalho com o fora de quadro que enriquece as cenas e uma uniformidade de atuações que poucas vezes acontece em filmes de ação.
A cena final, nas nuvens, é uma das maiores afirmações de autoria do cinema recente. Lembra “Cura” (1997), “Charisma” (1999) e “Pulse” (2001), longas responsáveis pelo culto ao diretor, mas tem ainda um frescor de novidade. É um capricho de assinatura num filme de mestre.
CLOUD: NUVEM DE VINGANÇA
– Avaliação Ótimo
– Quando Estreia nesta qui. (17) nos cinemas
– Classificação 16 anos
– Elenco Masaki Suda, Kotone Furukawa, Daiken Okudaira
– Produção Japão, 2024
– Direção Kiyoshi Kurosawa